“Para nunca esquecer” tudo o que viram na Ucrânia, 93 fotojornalistas fizeram este livro

São quase 400 imagens de digestão difícil – ou mesmo impossível – sobre as atrocidades cometidas na Ucrânia. O fotolivro Ukraine: A War Crime é uma arma contra o esquecimento.

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Bucha, Ucrânia Rafael Yaghobzadeh
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Atenção: este artigo contém imagens explícitas que podem impressionar os mais sensíveis

De cara escondida, uma mulher ajoelha-se diante da bandeira ucraniana. Ao virar a primeira página do fotolivro Ukraine: A War Crime seguem-se imagens de arquivo, estilizadas, das manchetes do The New York Times, do Frankfurter Allgemeine, do Le Monde, que anunciam o início da guerra. “Rússia invade a Ucrânia”, “Guerra na Europa”, lê-se.

O rosto de Vladimir Putin, abrindo e fechando essa compilação noticiosa como um símbolo de parêntesis, surge distorcido – sugerindo, adivinha-se, que o líder russo é responsável, em exclusivo, pela abertura e encerramento das portas do inferno na Ucrânia. Em inglês e ucraniano, segue-se a inscrição da autoria da fotojornalista Nicole Tung, que contribuiu com texto e fotografias para o livro: “Nestas imagens estão os testemunhos dos vivos e dos mortos, que falam em pé de igualdade sobre tudo o que foi suportado.”

Numa espécie de prólogo, o leitor é confrontado com imagens de bombardeamentos, de cidades em desordem, onde edifícios ardem ou desabam, onde cidadãos comuns se precipitam em direcção às saídas possíveis, onde feridos se amontoam em hospitais e onde não há mãos para enterrar todos os mortos condignamente. A violência das imagens introdutórias é uma preparação para o que se segue – um murro no estômago. Folhear o fotolivro Ukraine: A War Crime, que será publicado em Setembro de 2023 e que parte de uma iniciativa da organização não-governamental norte-americana FotoEvidence, dedicada à fotografia documental, é como mergulhar num universo paralelo que torna incontornável a pergunta: como é possível?

Voluntários utilizam uma porta para içar os corpos da terra, onde foram empilhados numa vala comum, por detrás da igreja de Santo André e Todos os Santos, em Bucha. Abril de 2022 Carol Guzy
Dmytro Kubata, de 13 anos, foi morto durante um bombardeamento numa paragem de autocarro, no leste da Ucrânia. O seu pai, Vyacheslav, ajoelha-se junto do seu corpo e segura a sua mão. A irmã do rapaz, que o acompanhava, ficou gravemente ferida. Hector Quintanar
As pessoas que estavam nas proximidades da estação de metro 23 de Setembro, em Kharkiv, foram mortas e feridas em resultado de um bombardeamento. A mulher na imagem encontrou o seu marido estendido, sem vida, no chão da estação a 26 de Maio de 2022. Maxim Dondyuk
Um grupo de refugiados ucranianos que fugiu de Irpin, um subúrbio de Kyiv, aguarda sobre uma ponte destruída para atravessar o rio, em Março de 2022 Byron Smith para The VII Academy
Criança no centro de acolhimento de Korczowa, próximo da fronteira ucraniana, espera diante um autocarro que é guardado por polícia polaca. O veículo irá transportar os refugiados para o aeroporto de Varsóvia. Espen Rasmussen/VII/VG
Fotografia captada por Evgeniy Maloletka durante o bombardeamento russo à maternidade de Mariupol. Na fotografia, Iryna Kalinina é transportada numa maca: perdeu a filha e morreu na sequência de ferimentos do bombardeamento Evgeniy Maloletka
Participantes do treino de defesa civil, organizado por um grupo político de extrema direita Corpo Nacional que decorre numa fábrica abandonada nos arredores de Kiev, treinam com armas fictícias, feitas de madeira, em Fevereiro de 2022. Oksana Parafeniuk
As cruzes de madeira são vistas num local onde decorrem enterros em massa, numa floresta próxima de Izium. Setembro de 2022. VIACHESLAV RATYNSKYI
Civil treina o lançamento de cocktails molotov para defender a cidade da invasão russa, em Zhytomyr, Março de 2022. VIACHESLAV RATYNSKYI
Soldados dos comandos especiais, unidade 112, mantêm um alegado espião russo sob custódia. Os agentes estiveram em prospecção na área para encontrar espiões que fornecem informações às forças russas. George, o comandante da unidade (que morreu em Junho de 2022, em Bakhmut), capturou um alegado espião que detinha um passaporte israelita falso. O homem vivia em Irpin há vários meses, mesmo antes da invasão russa, e confessou pertencer ao grupo Wagner. ziv koren
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Voluntários utilizam uma porta para içar os corpos da terra, onde foram empilhados numa vala comum, por detrás da igreja de Santo André e Todos os Santos, em Bucha. Abril de 2022 Carol Guzy

Fruto do trabalho de 93 fotojornalistas –​ entre os quais três de nacionalidade portuguesa, mas já lá vamos –​, as quase 400 imagens do livro estão dispostas ao longo de vários capítulos que descrevem praticamente todos os estágios ou perspectivas do conflito. A fuga e a crise migratória estão retratadas, assim como o quotidiano de quem permanece no país de forma forçada (os homens ucranianos ao abrigo da lei marcial) ou voluntária e encontra os mais diversos (e tantas vezes trágicos) desfechos.

O livro, concebido por Svetlana Bachevanova, fundadora da FotoEvidence, com edição fotográfica de Sarah Leen (a primeira mulher a fazer a edição de fotografia da revista National Geographic), é fruto de um esforço colaborativo de fotógrafos de 29 países que trabalham para agências noticiosas e jornais dos cinco continentes. A diversidade de histórias torna-o um documento de valor histórico; as colaborações de fotógrafos como Daniel Berhulak (prémio Pulitzer), Fabio Bucciarelli (vencedor de dois prémios no concurso World Press Photo), David Guttenfelder, também multipremiado, Carol Guzy (Pulitzer), Maks Levin (que faleceu na guerra na Ucrânia e a quem o livro presta homenagem), Heidi Levine, Christopher Occhicone, Espen Rasmussen ou Laetitia Vancon só acrescentam valor ao documento.

Volodymyr Demchenko, jornalista convertido em soldado ucraniano, escreve, no texto introdutório da obra, que o livro é um antídoto contra o esquecimento. “Diz-se que a história é escrita pelos vencedores. Existe verdade nesta afirmação, mas a invenção da fotografia e do vídeo tornou isso mais difícil. Agora, com documentação visual, é muito mais difícil, senão impossível, esconder os crimes e as catástrofes sociais.”

O contributo português

Os três portugueses na Ucrânia cujo trabalho integra o fotolivro são o jornalista freelancer André Luís Alves, que colabora, em Portugal, com o Expresso e a TSF, e na Turquia com a agência noticiosa Anadolou, Rui Caria, que colabora como fotojornalista para a SIC e o Expresso, e Rui Duarte Silva, fotojornalista também do semanário português.

André Luís Alves, que permaneceu nove meses na Ucrânia ao longo de 2022 e 2023 –​ e que se encontra, neste momento, em Kiev –​ conversou com o P3 sobre a sua experiência. Em Ukraine: A War Crime figuram três imagens do fotojornalista português.

Lviv, Ucrânia, Março de 2022. Uma igreja cristã ortodoxa arménia, em Lviv, tem uma estátua de Cristo do século XV. A estátua, uma das mais antigas da Ucrânia, foi removida para protecção. Técnicos polacos ajudaram a removê-la para um abrigo. A igreja é do século XVII. André Luís Alves
Kostiantynivka, Ucrânia, Outubro de 2022. Posto médico a seis quilómetros da linha da frente e de territórios ocupados pelas forças russas. O hospital também opera em serviço da população, mas apenas quando dois médicos e cerca de 12 enfermeiros estão em funções. O hospital está diariamente sob ameaça de bombardeamento. André Luís Alves
Chernihiv, Ucrânia, Abril de 2022. Chernihiv regressa à vida após ataques maciços e 39 dias de cerco. Pelo menos 700 pessoas morreram. Dentro de um apartamento destruído, num prédio residencial de 17 andares. André Luís Alves
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Lviv, Ucrânia, Março de 2022. Uma igreja cristã ortodoxa arménia, em Lviv, tem uma estátua de Cristo do século XV. A estátua, uma das mais antigas da Ucrânia, foi removida para protecção. Técnicos polacos ajudaram a removê-la para um abrigo. A igreja é do século XVII. André Luís Alves

Rui Caria esteve 40 dias na Ucrânia, divididos entre Março e Maio de 2022, em Kharkiv, Donbass, Bakhmut. O fotojornalista contribui com duas imagens para o fotolivro.

O corpo de um habitante da vila de Malaya Rohan deitado na berma de uma rua há vários dias, antes de ter sido recolhido pelas autoridades. 9 de Maio de 2022. Rui Caria
O corpo de um soldade não identificado foi abandonado numa das ruas da pequena vila de Malaya Rohan, uma das primeiras a ser invadida pelo exército russo. 9 de Maio de 2022 Rui Caria
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O corpo de um habitante da vila de Malaya Rohan deitado na berma de uma rua há vários dias, antes de ter sido recolhido pelas autoridades. 9 de Maio de 2022. Rui Caria

Rui Duarte Silva esteve na Ucrânia durante três semanas, em Março e Abril de 2022. Começou por Kiev, esteve também em Bucha, Hostomel, Irpin, em Odessa, Mikolaiv e Kharkiv. Tem uma imagem no fotolivro da FotoEvidence.

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Vadyn estava em sua casa quando um bombardeamento russo atingiu a cozinha comunitária próxima do seu prédio, perto do centro de Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia. Parte do edifício onde Vadyn vivia desabou e a sua casa ficou totalmente destruída. Rui Duarte Silva

Um livro de histórias

São quase tantas as histórias descritas no livro quanto o número de imagens nele publicadas. A leste, em Donetsk e Lugansk, destacam-se histórias de sobrevivência e desilusão.

Em Julho de 2022, em Siversk, na região de Donetsk, o fotojornalista mexicano Narciso Contreras fotografou o encontro emotivo entre dois soldados que sobreviveram a uma emboscada russa que matou todos os homens da sua unidade. Poucos meses antes, o fotojornalista norte-americano Wolfgang Schwan retratava a sargento Olga Simonowa, em Popsana, num momento de fadiga após um combate.

A militar tinha sobrevivido à batalha, em Oblast de Lugansk, lê-se na legenda. No final do bloco de texto, no entanto, o leitor é informado de que Olga, que atravessou, visivelmente, momentos tão difíceis, acabou por morrer em combate em Setembro, em Kherson.

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No funeral de caixão aberto do soldado ucraniano Ivan Datsko, de 38 anos, que foi morto em combate em Donetsk, a sua mãe Nadiya e o seu pai Vladimir sentem pesar. Abril de 2022 Finbarr O'Reilly for The New York Times

Quatro dias após o início da invasão russa, Daria decidiu deslocar-se, com os filhos Vladimir, de sete anos, e Viktor, de três, da vila onde viviam, Chuhuiv, a 40 quilómetros de Kharkiv, para um local mais seguro. Stanislav, marido de Daria há 15 anos e emigrado no Uzbequistão, mantinha contacto telefónico constante com a esposa. "Na última chamada telefónica que fez, um estranho atendeu o telefone e informou-o que Daria estava morta e que os seus filhos estavam no hospital." O filho mais novo do casal escapou com pequenos cortes na cara; o mais velho ficou com um pedaço de metal do carro alojado no crânio. O pai esperou quatro semanas para revelar às crianças que a mãe morreu.

Vladimir construiu uma arma de brincar com objectos que encontrou no hospital e Viktor pergunta insistentemente de que forma poderá trazer a mãe de volta do céu. O fotojornalista norte-americano Cheney Orr, colaborador da agência Reuters, retratou os três durante a Primavera de 2022, no hospital onde as crianças se encontravam em recobro.

Em Vilkhivka, nos arredores Kharkiv, Maio de 2022, o fotojornalista italiano Fabio Bucciarelli fotografa 11 soldados russos que jazem numa vala comum. Numa morgue da mesma cidade jaz o corpo de um soldado voluntário estrangeiro.

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Kharkiv, Ucrânia, Março de 2022. Na zona residencial de Saltivka, dois homens caminham entre os destroços da sua casa, atingida por um bombardeamento russo. Desde o início da invasão, Kharkiv é uma das zonas mais afectadas, sobretudo a área residencial. GIULIO PISCITELLI

Em Bucha, em Abril de 2022, após o massacre que deu fama mundial à vila ucraniana pelas piores razões, uma mulher idosa, sobrevivente do massacre, tirou a própria vida. Na imagem do fotojornalista norte-americano Wolfgang Schwan, os seus pés não tocam o chão e, em segundo plano, um voluntário abre o saco onde o seu corpo irá ser colocado.

Também em Bucha, no mesmo mês, o prémio Pulitzer australiano Daniel Berehulak fez o retrato de Tatiana Petrovna, de 72 anos, em choque após encontrar três cadáveres no jardim da casa das vítimas, seus familiares. “Um homem chamado Serhiy e o seu filho Roman foram mortos no quintal. De acordo com vizinhos, Serhiy ficou em Bucha para tomar conta dos cães, que os russos também mataram.”

Paula Bronstein, fotojornalista da Getty Images, capta, ainda no seguimento do massacre, uma imagem que mostra oito corpos de civis, em decomposição e de mãos amarradas, deitados junto de uma pilha de lixo deixada por soldados russos que os executaram.

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Uma mulher ucraniana observa os danos causados por bombardeamentos de drones conduzidos pelo exército ucraniano contra uma coluna de tanques russos. Bucha, Março de 2022 Rafael Yaghobzadeh

As histórias continuam, umas atrás das outras. A oeste de Kiev, em Irpin, Março de 2022, um prisioneiro de guerra russo de ar imberbe é fotografado por Wolfgang Schwan​ a ser transportado, de mãos e pés atados, por militares ucranianos através de uma ponte destruída.

Na zona oeste do país, já próximo da fronteira com a Polónia, em Truskavets, Mykhailo (Misha) Varvarych, ex-soldado, perdeu as duas pernas ao ser atingido por estilhaços de uma explosão. David Guttenfelder fotografou-o em Agosto de 2022 a exercitar o dorso e os braços em barras paralelas, no centro de reabilitação onde os colegas militares, também em recuperação, o tratam por “acrobata”.

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Criança chega, de comboio, a território dominado por forças ucranianas após a sua família ter abandonado a sua zona de residência, prestes a ser por militares russos. Ron Haviv
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