“Para nunca esquecer” tudo o que viram na Ucrânia, 93 fotojornalistas fizeram este livro
São quase 400 imagens de digestão difícil – ou mesmo impossível – sobre as atrocidades cometidas na Ucrânia. O fotolivro Ukraine: A War Crime é uma arma contra o esquecimento.
Atenção: este artigo contém imagens explícitas que podem impressionar os mais sensíveis
De cara escondida, uma mulher ajoelha-se diante da bandeira ucraniana. Ao virar a primeira página do fotolivro Ukraine: A War Crime seguem-se imagens de arquivo, estilizadas, das manchetes do The New York Times, do Frankfurter Allgemeine, do Le Monde, que anunciam o início da guerra. “Rússia invade a Ucrânia”, “Guerra na Europa”, lê-se.
O rosto de Vladimir Putin, abrindo e fechando essa compilação noticiosa como um símbolo de parêntesis, surge distorcido – sugerindo, adivinha-se, que o líder russo é responsável, em exclusivo, pela abertura e encerramento das portas do inferno na Ucrânia. Em inglês e ucraniano, segue-se a inscrição da autoria da fotojornalista Nicole Tung, que contribuiu com texto e fotografias para o livro: “Nestas imagens estão os testemunhos dos vivos e dos mortos, que falam em pé de igualdade sobre tudo o que foi suportado.”
Numa espécie de prólogo, o leitor é confrontado com imagens de bombardeamentos, de cidades em desordem, onde edifícios ardem ou desabam, onde cidadãos comuns se precipitam em direcção às saídas possíveis, onde feridos se amontoam em hospitais e onde não há mãos para enterrar todos os mortos condignamente. A violência das imagens introdutórias é uma preparação para o que se segue – um murro no estômago. Folhear o fotolivro Ukraine: A War Crime, que será publicado em Setembro de 2023 e que parte de uma iniciativa da organização não-governamental norte-americana FotoEvidence, dedicada à fotografia documental, é como mergulhar num universo paralelo que torna incontornável a pergunta: como é possível?
Fruto do trabalho de 93 fotojornalistas – entre os quais três de nacionalidade portuguesa, mas já lá vamos –, as quase 400 imagens do livro estão dispostas ao longo de vários capítulos que descrevem praticamente todos os estágios ou perspectivas do conflito. A fuga e a crise migratória estão retratadas, assim como o quotidiano de quem permanece no país de forma forçada (os homens ucranianos ao abrigo da lei marcial) ou voluntária e encontra os mais diversos (e tantas vezes trágicos) desfechos.
O livro, concebido por Svetlana Bachevanova, fundadora da FotoEvidence, com edição fotográfica de Sarah Leen (a primeira mulher a fazer a edição de fotografia da revista National Geographic), é fruto de um esforço colaborativo de fotógrafos de 29 países que trabalham para agências noticiosas e jornais dos cinco continentes. A diversidade de histórias torna-o um documento de valor histórico; as colaborações de fotógrafos como Daniel Berhulak (prémio Pulitzer), Fabio Bucciarelli (vencedor de dois prémios no concurso World Press Photo), David Guttenfelder, também multipremiado, Carol Guzy (Pulitzer), Maks Levin (que faleceu na guerra na Ucrânia e a quem o livro presta homenagem), Heidi Levine, Christopher Occhicone, Espen Rasmussen ou Laetitia Vancon só acrescentam valor ao documento.
Volodymyr Demchenko, jornalista convertido em soldado ucraniano, escreve, no texto introdutório da obra, que o livro é um antídoto contra o esquecimento. “Diz-se que a história é escrita pelos vencedores. Existe verdade nesta afirmação, mas a invenção da fotografia e do vídeo tornou isso mais difícil. Agora, com documentação visual, é muito mais difícil, senão impossível, esconder os crimes e as catástrofes sociais.”
O contributo português
Os três portugueses na Ucrânia cujo trabalho integra o fotolivro são o jornalista freelancer André Luís Alves, que colabora, em Portugal, com o Expresso e a TSF, e na Turquia com a agência noticiosa Anadolou, Rui Caria, que colabora como fotojornalista para a SIC e o Expresso, e Rui Duarte Silva, fotojornalista também do semanário português.
André Luís Alves, que permaneceu nove meses na Ucrânia ao longo de 2022 e 2023 – e que se encontra, neste momento, em Kiev – conversou com o P3 sobre a sua experiência. Em Ukraine: A War Crime figuram três imagens do fotojornalista português.
Rui Caria esteve 40 dias na Ucrânia, divididos entre Março e Maio de 2022, em Kharkiv, Donbass, Bakhmut. O fotojornalista contribui com duas imagens para o fotolivro.
Rui Duarte Silva esteve na Ucrânia durante três semanas, em Março e Abril de 2022. Começou por Kiev, esteve também em Bucha, Hostomel, Irpin, em Odessa, Mikolaiv e Kharkiv. Tem uma imagem no fotolivro da FotoEvidence.
Um livro de histórias
São quase tantas as histórias descritas no livro quanto o número de imagens nele publicadas. A leste, em Donetsk e Lugansk, destacam-se histórias de sobrevivência e desilusão.
Em Julho de 2022, em Siversk, na região de Donetsk, o fotojornalista mexicano Narciso Contreras fotografou o encontro emotivo entre dois soldados que sobreviveram a uma emboscada russa que matou todos os homens da sua unidade. Poucos meses antes, o fotojornalista norte-americano Wolfgang Schwan retratava a sargento Olga Simonowa, em Popsana, num momento de fadiga após um combate.
A militar tinha sobrevivido à batalha, em Oblast de Lugansk, lê-se na legenda. No final do bloco de texto, no entanto, o leitor é informado de que Olga, que atravessou, visivelmente, momentos tão difíceis, acabou por morrer em combate em Setembro, em Kherson.
Quatro dias após o início da invasão russa, Daria decidiu deslocar-se, com os filhos Vladimir, de sete anos, e Viktor, de três, da vila onde viviam, Chuhuiv, a 40 quilómetros de Kharkiv, para um local mais seguro. Stanislav, marido de Daria há 15 anos e emigrado no Uzbequistão, mantinha contacto telefónico constante com a esposa. "Na última chamada telefónica que fez, um estranho atendeu o telefone e informou-o que Daria estava morta e que os seus filhos estavam no hospital." O filho mais novo do casal escapou com pequenos cortes na cara; o mais velho ficou com um pedaço de metal do carro alojado no crânio. O pai esperou quatro semanas para revelar às crianças que a mãe morreu.
Vladimir construiu uma arma de brincar com objectos que encontrou no hospital e Viktor pergunta insistentemente de que forma poderá trazer a mãe de volta do céu. O fotojornalista norte-americano Cheney Orr, colaborador da agência Reuters, retratou os três durante a Primavera de 2022, no hospital onde as crianças se encontravam em recobro.
Em Vilkhivka, nos arredores Kharkiv, Maio de 2022, o fotojornalista italiano Fabio Bucciarelli fotografa 11 soldados russos que jazem numa vala comum. Numa morgue da mesma cidade jaz o corpo de um soldado voluntário estrangeiro.
Em Bucha, em Abril de 2022, após o massacre que deu fama mundial à vila ucraniana pelas piores razões, uma mulher idosa, sobrevivente do massacre, tirou a própria vida. Na imagem do fotojornalista norte-americano Wolfgang Schwan, os seus pés não tocam o chão e, em segundo plano, um voluntário abre o saco onde o seu corpo irá ser colocado.
Também em Bucha, no mesmo mês, o prémio Pulitzer australiano Daniel Berehulak fez o retrato de Tatiana Petrovna, de 72 anos, em choque após encontrar três cadáveres no jardim da casa das vítimas, seus familiares. “Um homem chamado Serhiy e o seu filho Roman foram mortos no quintal. De acordo com vizinhos, Serhiy ficou em Bucha para tomar conta dos cães, que os russos também mataram.”
Paula Bronstein, fotojornalista da Getty Images, capta, ainda no seguimento do massacre, uma imagem que mostra oito corpos de civis, em decomposição e de mãos amarradas, deitados junto de uma pilha de lixo deixada por soldados russos que os executaram.
As histórias continuam, umas atrás das outras. A oeste de Kiev, em Irpin, Março de 2022, um prisioneiro de guerra russo de ar imberbe é fotografado por Wolfgang Schwan a ser transportado, de mãos e pés atados, por militares ucranianos através de uma ponte destruída.
Na zona oeste do país, já próximo da fronteira com a Polónia, em Truskavets, Mykhailo (Misha) Varvarych, ex-soldado, perdeu as duas pernas ao ser atingido por estilhaços de uma explosão. David Guttenfelder fotografou-o em Agosto de 2022 a exercitar o dorso e os braços em barras paralelas, no centro de reabilitação onde os colegas militares, também em recuperação, o tratam por “acrobata”.