A tradição revista e aumentada de Ana Lua Caiano

Ana Lua Caiano did it again: um perfeito exemplo do que significa fazer música portuguesa em 2023.

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O segundo EP de Ana Lua Caiano é mais um precioso punhado de canções que são tanto de ontem quanto de hoje DR
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E, de repente, parece que Ana Lua Caiano está por todo o lado – confirmada em festivais como o Alive ou o Imaterial, ao mesmo tempo que actua em salas pequenas, como a Zé dos Bois e os Maus Hábitos. Faz sentido que assim seja. As suas canções, onde José Afonso e Björk são, subitamente, colegas de casa, onde Fausto e Portishead parecem os mais íntimos compagnons de route, têm tanto de subversivo e de criativo num registo de one-woman band quanto de universal pela forma instantânea como nos ligamos quer ao seu universo melódico popular, quer às ferramentas rítmicas muito deste tempo em que a pop foi amplamente colonizada pelas electrónicas e pelo hip-hop.

De certa forma, é como Ana Lua Caiano trepasse por uma escada onde, nos degraus anteriores, já encontrávamos Gaiteiros de Lisboa e Diabo na Cruz. Explicando: uns e outros inventaram a sua própria gramática da música popular, baseando-se em ritmos e melodias da tradição portuguesa – no caso dos primeiros insuflando a esse referencial um espírito punk, mas com recurso aos instrumentos da tradição e a outros inventados pelo grupo, enquanto os segundos cruzavam esse mesmo universo com o rock dos The Strokes como se estas pontas fossem as mais lógicas de atar num nó inquebrável.

Aquilo que logo se percebeu com o EP de estreia de Ana Lua Caiano, Cheguei Tarde a Ontem (2022), é que semelhante movimento se estabelece com os universos trip-hop e hip-hop, sem que as canções daí resultantes soem a mundos em colisão ou peças de puzzle forçadas até dobrarem os cantos e a encaixarem-se de vez.

É tudo natural e orgânico na música de Caiano, e isso é algo que fica claro quando a vemos em palco como se estivesse no seu quarto: tudo acontece em poucos metros quadrados, os suficientes para albergar o teclado, a loop station, o bombo e mais uns quantos instrumentos ali à mão, tudo aquilo de que precisa para construir as suas camadas de voz, percussão e melodias sobrepostas. Cheguei Tarde a Ontem e agora Se Dançar É só depois traduzem na perfeição este universo de mesa-de-cabeceira para estúdio, sem a tentação de trair este universo com os milhentos recursos que a situação pode permitir. Em vez disso, estes dois EP que entram um pelo outro, paridos pela mesma visão musical, replicam uma crueza que significa apenas ausência de floreados ou de pretensiosismo, e uma clara confiança na qualidade de canções que não precisam de se pôr em bicos de pés para se fazer escutar.

A haver agora uma diferença mais destacada em relação a Cheguei Tarde a Ontem, será a de uma maior predisposição experimental que por aqui se detecta, levantando talvez o véu que cobre ainda o álbum de estreia de Ana Lua Caiano (com edição prevista para o final do ano). E é uma experimentação que tanto baila com o fragmento de piano melancólico que embala Casa abandonada – um queixume musical acerca da especulação imobiliária e das casas desabitadas que polvilham as gentrificadas paisagens urbanas –, quanto avança pelo tema de baile urbano Adormeço sem dizer para onde vou, esparramado sobre um fundo instrumental que se diria filho mais dos Buraka Som Sistema do que de qualquer chula ou malhão.

Tudo se junta num excelente EP ligado pelas partes do corpo que Ana Lua Caiano canta nos vários temas – de Mão na mão e Vou abaixo, vou acima (melodicamente muito na esfera dos Diabo na Cruz com estilhaços de Django Django via Devo), em que canta “Nesta corrida ai eu não morro/ mas a cabeça corre com desgosto”, a Dói-me a cabeça e o juízo ou Se dançar é só depois. Estas duas últimas, no forte universo poético de Caiano, exploram outros irresistíveis pequenos mundos. Dói-me a cabeça e o juízo parece nascer de uma outra genealogia, que cose Ana Lua aos Deolinda e a Sérgio Godinho. Mas se Godinho cantava as dores do adeus à juventude, agarrado ao baço e ao joelho em O elixir da eterna juventude, e os Deolinda satirizavam o desespero de alguém perante a falta de queixas para apresentar ao médico em Não tenho mais razões, Ana Lua Caiano canta agora a dor da “perna de quem passa” e da “cabeça de quem vejo”. Ou seja, canta as dores alheias que faz suas e resume num “Ó senhor doutor, dói-me tudo, senhor”.

Em Se dançar é só depois, continua, de forma brilhante, a sua análise de uma vida contemporânea carregada de ansiedades, culpas, urgências, desejos de ubiquidade e, muito em particular neste caso, do peso laboral (o excesso das exigências, a falta das compensações) dos nossos dias. E canta Ana Lua a vontade de partilhar a vida com o seu amor – “se o meu quarto aumentar” – enquanto se deita “com os pés no chão/ para ser mais fácil levantar”.

Ana Lua Caiano did it again: ao segundo EP, mais um precioso punhado de canções que são tanto de ontem quanto de hoje, vestidas de trajes minhotos mas com botas All Star e baquetas apontadas tanto a bombos quanto a baterias digitais. Um perfeito exemplo do que significa fazer música portuguesa em 2023. Sem querer ser estandarte do que quer que seja.


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