Cuba e a luta de libertação na Guiné-Bissau

A China e a URSS apoiaram de várias formas os movimentos anticoloniais africanos. Mas em alguns casos, como o da Guiné-Bissau, a solidariedade demonstrada por Cuba foi tão ou mais marcante.

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Amílcar Cabral e Fidel Castro em Cuba, por ocasião da Conferência Tricontinental, em Janeiro de 1966 Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso
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“N’ obi tiru, pa n’ bai buska bala di kubanu” significa “Eu ouvi tiros, para ir buscar balas dos cubanos”. É um verso de uma cantiga popular que se ouve no Sul da Guiné-Bissau, onde a luta de libertação foi particularmente intensa. Mais a sul, do outro lado da fronteira, está Kandiafara, lugar na República da Guiné, onde a partir de 1966, e até ao final da guerra, existiu um aquartelamento militar cubano. Contou-me Vítor Bor que muitos dos que incorporaram as Forças Armadas Revolucionárias do Povo (FARP) realizaram treinos militares em Kandiafara, com instrutores cubanos que lhe ensinavam “a utilizar armas pesadas, a calcular quilometragens, a medir a distância e a velocidade das balas [...], até recebemos fardamentos cubanos”.

Também no Norte da Guiné-Bissau, à chegada ao lugar onde outrora existiu um aquartelamento do PAIGC, Malam Mota contou-me sobre um campo de cubanos: “Aqui era o campo dos cubanos. Havia aqui um comandante cubano, Antonio, um homem alto, que sempre nos dizia: ‘Muy bien, compañero de lucha[risos].

Em contraponto, nos primeiros contactos que estabeleci em Havana, a memória da presença de cubanos na Guiné-Bissau pareceu-me ter-se diluído num conjunto de recordações de outras intervenções internacionalistas, principalmente a de Angola (1975-91), mais longa e recente, envolvendo um maior número de militares e cidadãos. Esta diluição da memória foi particularmente evidente quando questionei militares e médicos cubanos sobre as motivações políticas para integrarem a luta de libertação guineense. As respostas referiram-se unanimemente a uma “dívida histórica com África”, justificada pelo facto de Cuba se haver tornado uma grande nação graças ao trabalho escravo, esforço que havia agora que retribuir de forma voluntária.

Este argumento histórico, que apenas integrou os discursos oficiais aquando da intervenção de Angola, foi antecipado por Amílcar Cabral na Tricontinental de Havana, em 1966, quando referiu que haveria que repetir “o caminho outrora doloroso e trágico dos nossos antepassados (nomeadamente da Guiné e de Angola)”, agora como “homens livres”, para “reforçar tantos laços históricos, de sangue e de cultura que unem os nossos povos ao povo cubano. Intitulado A Arma da Teoria, este discurso consagrou Cabral como um dos líderes anticoloniais mais carismáticos.

“Che” Guevara considerara que a luta contra o colonialismo português não seria a mais relevante, nem Portugal uma significativa potência imperialista; mas Fidel Castro ficou tão impressionado com Cabral que o convidou a fazer uma viagem de três dias em Cuba, que datou o início do apoio cubano à luta de libertação na Guiné-Bissau. Cuba foi, de resto, o único país a enviar militares para o teatro de operações e a perder cidadãos na luta de libertação travada pelo PAIGC.

O cinema cubano

A colaboração cubana com a estratégia diplomática incitada por Cabral deu-se, ainda, através da produção cinematográfica. Um ano depois de o primeiro contingente militar cubano ter chegado à Guiné-Bissau, chegou a primeira equipa de cinema, liderada pelo realizador Jose Massip, um dos fundadores do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC).

Massip realizou o filme Madina de Boé. Selecionado e premiado em diferentes festivais internacionais, permitiu à causa do PAIGC sensibilizar novos públicos, além dos países do Bloco Socialista. O filme destaca-se por ser um dos poucos filmes em torno da luta de libertação em que Amílcar Cabral está, aparentemente, presente nas zonas libertadas. Convivendo com a população e os militares, Cabral enverga uma farda militar, partilhando a iconografia de outros líderes revolucionários da época, como Fidel Castro e “Che” Guevara.

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Cartaz de Madina Boe (1969), de Jose Massip

A ausência de Cabral no teatro de operações militares era assumida pelo próprio, mas desconcertava os militares cubanos, para quem os dirigentes deveriam estar na linha da frente.

O líder do PAIGC voltaria a ser filmado por Massip em 1971 e desta rodagem subsiste um diário do realizador. Em Los Dias del Kankouran, Massip desvenda que Cabral lhe pediu para ser filmado no matu, para contornar críticas de que era alvo: a de se estar a transformar num intelectual urbano, baseado em Conacri, que não se expunha aos riscos da luta armada. Porém, o matu onde Cabral foi filmado não era nas zonas libertadas, como a narrativa fílmica deveria conduzir o espectador a “ver”, mas sim o antes mencionado aquartelamento militar cubano em Kandiafara, território da República da Guiné.

Se o cinema cubano colaborou na construção de uma imagem de Cabral como chefe de guerra, também permitiu a difusão dos ideais da Revolução Cubana. Em Madina de Boé, guineenses são filmados a assistirem a imagens de Cuba: máquinas agrícolas a lavrar campos, instrumentos científicos modernos e pessoas na rua a celebrar a oportunidades desencadeadas pelo Governo de Fidel Castro. Esta foi, muito provavelmente, uma situação criada pela equipa de realização.

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Amílcar Cabral manuseando uma Kalashnikov, em Boké, em Agosto de 1971 Bruna Polimeni/Fundação Mário Soares e Maria Barroso

Procurava-se assim que o imaginário dos guineenses encontrasse inspiração nas configurações políticas geradas pela Revolução Cubana, prontas a serem aplicadas noutros contextos. Como observou o investigador Alexsandro Silva, a voz-off em Madina de Boé é orientada para a construção de uma “visão cubana” do processo político guineense, ao mesmo tempo que se coloca no lugar de tradutor “oficial” dos anseios sociais e políticos do PAIGC.

Na obra do historiador Piero Gleijeses, Conflicting Missions. Havana, Washington and Africa. 1959-1976, encontra-se uma reconstituição exaustiva da participação cubana em África, com grande atenção à Guiné-Bissau. Mesmo após a independência da Guiné, Cabral permaneceria nas imagens produzidas pelo ICAIC. Em 1980, Massip realiza o filme Homenagem a Amílcar Cabral e o líder do PAIGC continuaria a ser frequentemente evocado no Noticiero ICAIC Latino-Americano, assim como em discursos de Fidel Castro.

Um preso cubano de Caxias

Durante o período da guerra, o Governo português manteve, ainda que tensas, relações diplomáticas com Cuba. A produção cinematográfica mencionada, assim como o facto de um navio cubano se encontrar atracado no Porto de Conacri, entre outros indícios, permitiram que os serviços secretos portugueses e os dos EUA, através da CIA, abalassem o secretismo da missão cubana na Guiné.

A captura do capitão cubano Pedro Peralta pelo Exército português veio, contudo, agravar a tensão. E as hostilidades diplomáticas intensificaram-se a 24 de setembro de 1973, com a notícia em Havana de que o PAIGC havia proclamado um novo Estado. Apesar do assassínio de Amílcar Cabral oito meses antes, o PAIGC havia reunido as condições para proclamar unilateralmente o Estado da Guiné-Bissau.

A proclamação do Estado teve lugar em Lugajol, no Leste da Guiné-Bissau, no interior de uma densa floresta. Realizada num cenário muito distinto dos lugares habituais à diplomacia protocolar, a cerimónia implicou um forte investimento logístico. Só assim foi possível dispor numerosas cadeiras para formar um plenário, receber embaixadores, jornalistas e cineastas, construir uma tribuna onde os discursos de Estado fossem proferidos e, finalmente, servir um almoço protocolar. Dois dias depois desta cerimónia, a Embaixada Portuguesa em Havana alertava o Ministério dos Negócios Estrangeiros para a real possibilidade de este novo Estado ser reconhecido pelo Governo de Fidel Castro.

Mas Cuba não se limitou a reconhecer o novo Estado da Guiné-Bissau. Grande parte do investimento logístico anteriormente mencionado ficou a seu cargo. Coube a Manuel Agramonte, à época embaixador de Cuba na República da Guiné, assegurar o transporte e a segurança dos diplomatas, jornalistas e cineastas presentes, bem como a organização protocolar da cerimónia. Também os cartazes com o rosto de Cabral foram produzidos pela Organização de Solidariedade com os Povos da Ásia, de África e da América Latina, a OSPAAAL, na qual Cuba tinha um lugar proeminente.

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Abraço entre Fidel Castro e Amílcar Cabral, sob o olhar de Aristides Pereira Casa Comum/Fundação Mário Soares e Maria Barroso

A proclamação do novo Estado veio reforçar a ilegitimidade da reivindicação de soberania portuguesa sobre o território. O mesmo argumento foi usado pelo advogado antifascista Manuel João da Palma Carlos na defesa de Peralta, para refutar a acusação de que o capitão cubano havia sido capturado em território português.

Apanhado na transição entre um Império colonial que se recusava a perder o que considerava ser parte integrante do seu território e um Estado que procurava reconhecimento internacional para afirmar a sua soberania política, Pedro Rodriguez Peralta permaneceu grande parte desta guerra na prisão política de Caxias, em Portugal. O Governo português recusou-se a libertar Peralta sem que fosse publicamente admitido o apoio de Cuba à luta de libertação guineense. O seu sofrimento prolongou-se além do fim da guerra. Enquanto preso político da mais longa ditadura europeia, Peralta guarda o rancor de não ter sido libertado logo no final de abril de 1974, à semelhança da generalidade dos presos políticos portugueses, mas sim a 15 de setembro do mesmo ano. Peralta foi um peão no complexo jogo da Guerra Fria, do qual as guerras de libertação/coloniais fizeram parte. Não obstante, nas antigas zonas libertadas, as balas dos cubanos ainda são cantadas: “N’ obi tiru, pa n’ bai buska bala di kubanu.”


Ler mais:

Amílcar Cabral, "A arma da teoria", in Amílcar Cabral. Documentário, ed. António Duarte Silva (Lisboa: Edições Cotovia, 2008).

Alexsandro de Sousa, "Os esboços da nação guineense em Madina Boé (1968), de José Massip", Significação: Revista de Cultura Audiovisual 45, n.º 50 (2018).

Piero Gleijeses, Conflicting Missions. Havana, Washington and Africa, 1959-1976.


Catarina Laranjeiro é investigadora do IHC/IN2PAST e investigadora FCT/CEEC individual. É autora Dos Sonhos e das Imagens. A Guerra de Libertação na Guiné-Bissau (Lisboa, Outro Modo Cooperativa Cultural, 2021).

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