Quer investir com retorno garantido? Saiba qual o melhor investimento do mundo

Talvez seja mais divertido ou emocionante investir em criptomoedas, mas as vacinas são o melhor investimento do mundo. Isto, claro, para os que acreditam que uma vida não tem preço.

Entrar na Síria em plena guerra foi a maior disrupção na minha vida. Cruzar em sentido contrário as vagas de refugiados, conviver bem de perto com grupos de fanáticos extremistas da Al-Qaeda e do Estado Islâmico, ser sobrevoado por máquinas de guerra do regime e saber que éramos um alvo, sentir o coração do sofrimento daquele povo com a sua pátria-mãe a sangrar, e claro os incontáveis casos clínicos in extremis com centenas de feridos de guerra, e também, como sempre onde há pobreza, casos clínicos obstétricos que me sugaram toda a energia. Ainda assim, uma das maiores surpresas estava para vir.

Foi na azáfama do dia-a-dia, cheio de trabalho, e quase mal sempre mal dormido, que num belo dia um dos jovens médicos sírios veio pedir a minha ajuda, para avaliar um rapazinho de 5 anos, que veio ao nosso serviço de urgência. Caso clínico estranho, com uma perda de força progressiva dos membros inferiores. Fiz o exame neurológico sumário e lembrei-me de que tinha lido algures sobre o reaparecimento da poliomielite na Síria, por falta de vacinação causada pela guerra. Sabia pouco ou nada, a não ser apontamentos históricos, de uma doença que foi erradicada da Europa (e quase todo o mundo), e como tal, fui estudar. Confirmou-se. Poliomielite. Nada que eu pudesse fazer, e uma vida condenada às sequelas de uma doença terrível, cuja vacina existe desde 1955.

Há dias, a Unicef lançou talvez o documento mais importante do mundo: State of the World´s Children 2023, sobre o ponto da situação mundial da vacinação infantil básica. O que mais me incomoda sobre este relatório, grátis, simples, de leitura gráfica e fácil, é o facto de eu não ver ou ouvir nada de nada, na discussão da opinião pública sobre isto. Haverá assunto mais importante a discutir do que como salvar crianças de mortes facilmente evitáveis com aquele que é um dos maiores avanços da medicina, a vacinação?

Porque é que o mundo pára para discutir as acusações de abuso pelo Dalai Lama de uma criança indiana, mas ninguém se interessa por discutir como salvar vidas de crianças na Índia, que é o país do mundo com mais crianças não vacinadas? Polémicas e sangue na praça pública queremos todos muito; compreender como é que se salva uma vida, isso pouco ou nada agita as mentes.

São 67 milhões de crianças abaixo dos 5 anos que não têm a vacinação básica, são 20% das crianças do mundo. E contra o sarampo, que é altamente transmissível e tem uma mortalidade significativa, são também 20% das crianças do planeta que não têm este tesouro de anticorpos, contra este terrível assassino de crianças. No caso da vacina contra o HPV (Vírus do Papiloma Humano), são 87,5% das raparigas do mundo que não possuem este brutal travão nas mortes por cancro do colo do útero.

Em 1990, 9% das crianças do planeta morriam antes dos 5 anos. Passados 30 anos este número desceu drasticamente para 3,7%, e a melhoria deve-se essencialmente à vacinação. Infelizmente, estes últimos três anos foram de um grande retrocesso, pelas consequências da pandemia, por dois motivos. O primeiro é óbvio: a interrupção do normal funcionamento das instituições humanitárias, e as restrições de viagens tiveram consequências dramáticas nas campanhas de vacinação. O segundo é mais melindroso: as notícias falsas, e a desinformação à volta das vacinas contra a covid-19, levaram a um aumento do cepticismo sobre as vacinas no seu geral.

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Vacinação de uma criança afegã em 2017 GHULAMULLAH HABIBI/Lusa

Sabemos que os fenómenos conspiracionistas antivacinas não vêm de agora. A mentira grave de que há vacinas que causam autismo já foi desmentida infinitas vezes, mas ainda circula pelas cabeças mal informadas. Onde reina a ignorância, os mitos passam a verdades.

Vejamos o caso do sarampo nos EUA. Matava cerca de 500 crianças por ano até ao aparecimento da vacina em 1985. No ano 2000 o vírus foi dado como eliminado, com um ou outro caso, por norma, vindos de fora. Em 2019 houve vários surtos de sarampo, em diferentes estados do país, e a associação com a diminuição da taxa de vacinação por decisão dos pais é evidente.

Diz o relatório da Unicef que as vacinas salvam 4,4 milhões de vidas por ano em todo o mundo, mas poderão salvar 5,8 milhões de vidas por ano, se se cumprirem as metas da vacinação para 2030.

Vacinar uma criança custa 58 dólares. Isto não é o preço dos medicamentos, mas sim uma estimativa média de todo o processo de vacinação, que, como compreenderão, numa zona de conflito pode roçar o impossível. As vacinas não só salvam vidas como diminuem o absentismo escolar e as faltas ao trabalho dos pais, diminuem drasticamente os gastos em saúde e, como tal, cada dólar nelas investido tem um retorno de 26 dólares.

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Eu expliquei àquele pai que achava que o rapazinho tinha poliomielite. Expliquei que prevenir é fácil, mas tratar é impossível, e que provavelmente iria ficar com a marcha condicionada para a vida. O pai perguntou-me porque é que o filho dele não foi vacinado.

Eu gelei em silêncio, sem saber o que dizer perante as lágrimas de sofrimento desta alma perdida. Talvez, ao escrever, vocês me ajudem a encontrar a resposta:

Porque é que há crianças por vacinar?

As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel António da Mota a favor dos Médicos Sem Fronteiras

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