Pagar para trabalhar: até quando?

Gratidão e esperança, tal como trabalho gratuito, ainda não pagam contas. Continuamos a formar uma juventude altamente capaz, altamente subvalorizada e cada vez mais revoltada.

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Megafone P3: Trabalhar de graça: até quando? Unsplash

- Que curso tiraste?
- Direito
- Boa, és advogado!
- Não, para isso precisava de fazer o estágio da Ordem.
- E não queres fazer?
- Até queria, mas não quero trabalhar de graça.

Assim descrevo o início de dezenas de conversas desde que me licenciei como jurista. Parece um exercício socrático, mas é a realidade de milhares de jovens que todos os anos terminam os seus cursos, entusiasmados para entrar no mercado laboral, e se vêm confrontados com uma enorme barreira de entrada: estágios não remunerados.

Escrevo sobre os estudantes de Direito por ser a minha experiência, mas o cenário é semelhante para outras profissões com ou sem ordens profissionais. Isto ajuda a explicar, em boa parte, a dificuldade de emancipação dos jovens em Portugal que apenas saem de casa dos pais após os 33 anos, em média.

Depois, passo a explicar que o estágio da Ordem dos Advogados tem a duração de um ano e meio e não é remunerado. Para além disso, para alunos não bolseiros, tem custos elevados que ascendem a mais de dois mil euros. Junta-se a esta quantia a alimentação, transporte e, para uma grande parte de nós, o alojamento. Até com um emprego remunerado é cada vez mais difícil fazer face a estas despesas.

Isto significa que, depois de quatro anos de curso (ou mais considerando um mestrado) somos obrigados a continuar a viver às custas dos nossos pais, se eles tiverem essa possibilidade — provavelmente, causando ainda mais despesa do que durante a licenciatura. Se não tiverem essa possibilidade, precisamos de fazer uma escolha que vai impactar o resto das nossas vidas: uma profissão diferente, uma outra área ou, para muitos, a emigração.

Esta situação é particularmente injusta quando consideramos a forma como incrementa as desigualdades sociais e de coesão territorial. Tendencialmente, apenas os jovens com alguma capacidade económica se podem sujeitar a estágios gratuitos de longa duração, violando o princípio da equidade (um princípio constitucional) e fazendo com que apenas estes tenham acesso efectivo às profissões ou aos estágios mais compensadores do ponto de vista profissional, a longo prazo.

Depois, aumentam os desequilíbrios entre o interior e litoral, entre zonas rurais e urbanas, violando princípios de coesão territorial. As maiores empresas e sociedades, com melhores perspectivas de futuro para os jovens, localizam-se no litoral e zonas urbanas. Isto faz com que os custos de um estágio não remunerado sejam substancialmente superiores para um estudante das zonas rurais e do interior do que para um jovem residente nas áreas urbanas, do litoral. Já os custos da licenciatura são substancialmente diferentes.

Estas condições criam, assim, um ciclo vicioso e constituem um entrave não só à emancipação dos jovens, mas ao próprio elevador social.

Felizmente, e após décadas de luta, no final de 2022 o nosso Parlamento aprovou uma proposta para limitar os estágios de acesso a ordens profissionais a 12 meses e a obrigar a sua remuneração. Ainda não está claro como se vai processar e, honestamente, só vamos acreditar quando se tornar realidade na prática.

Não seria de todo inesperado que alguma alteração legislativa causasse um retrocesso social nesta matéria. No contexto actual, a luta pelos direitos conseguidos pode e deve ser uma constante. Principalmente quando a medida proposta pelo PAN foi aprovada com os votos contra do PSD e Chega.

Mesmo assim, ainda não acabamos com os estágios não remunerados, uma vez que o diploma apenas se aplica no caso das profissões com inscrição obrigatória na ordem. Nos restantes casos, esta ainda é uma possibilidade, mesmo em estágios de longa duração.

Aqui, devemos começar a discutir um tópico mais controverso: estágios curriculares. É aceitável, sob o pretexto do ensino e “ganhar experiência”, que sejam integrados períodos destes nas licenciaturas. No entanto, a experiência de muitos jovens é que após alguns meses, se acabam por substituir aos restantes trabalhadores nas tarefas e até suprem necessidades crónicas de pessoal. Este é o relato, por exemplo, de muitos estudantes na área da saúde.

Se, por um lado, este é um problema de forma, por outro reflecte um problema de cultura, que acredita que, apesar de pertencermos à geração mais formada de sempre, não valemos o suficiente e não precisamos de ser recompensados pelo nosso trabalho. Que nos devemos sujeitar a más condições e estar gratos por oportunidades que não oferecem condições básicas.

Mas como gratidão e esperança, tal como trabalho gratuito, ainda não pagam contas, continuamos a formar uma juventude altamente capaz, altamente subvalorizada e cada vez mais revoltada.

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