“Uma solução pontual não faz sentido. O mar trabalha todos os dias e nunca se cansa”

Na Figueira da Foz, as areias acumulam-se a norte, criando a maior praia urbana da Europa, e desaparecem a sul, obrigando a reposição constante de sedimentos para manter as dunas

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Há vários problemas identificados na Figueira da Foz: o recuo e avanço da costa, as areias acumuladas a norte e o perigo na barra do porto Tiago Bernardo Lopes
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Jorge de Jesus e Corina Andrade instalaram-se sob o guarda-sol vermelho ao cimo da duna com vista para a praia do 5.º esporão, na Figueira da Foz. O construtor civil, de 54 anos, costumava preferir as praias da Cova-Gala, mesmo ali ao lado, mas isso deixou de ser possível. “Agora já não têm areia, não podemos ir para ali”, diz.

A costa da Figueira da Foz mudou desmesuradamente nas últimas décadas, crescendo em areia do lado Norte do porto marítimo e diminuindo drasticamente a sul. Há dois anos, na sequência dos resultados de um estudo, o Ministério do Ambiente e da Acção Climática (MAAC) assumia que, por ser a mais adequada, seria feita uma obra de transposição permanente de areias (o chamado bypass), que o movimento cívico SOS Cabedelo anda a exigir há mais de uma década. Mas a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) avisa que nada disso é para já. E há quem se desespere com a espera.

Do sítio onde se instalaram, Jorge e Corina têm vista para a intervenção que a APA tem, de novo, em curso naquela que, recorda Miguel Figueira, da SOS Cabedelo, já foi uma duna de proporções épicas. “Há 20 anos, no sítio onde estamos, estaríamos soterrados. Isto era uma duna enorme. Quando éramos miúdos, descíamos estas dunas com pranchas, isto era uma coisa colossal”, recorda.

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As obras na linha costeira da Figueira da Foz criaram um desequilíbrio brutal na costa.​​

Tiago Bernardo Lopes

Agora, esse monstro de areia é só uma memória. Ali em frente, estão sacos enormes de sedimentos colocados na base do que resta da duna, que a APA instalou no local há alguns anos, na tentativa de reter parte da areia que tem sido reposta, pontualmente, no local. Sobre a duna há um tubo, que serve para transportar areia para ali, alimentando artificialmente a costa.

Miguel Figueira diz que a última reposição de areias, trazidas do zona do porto, terminou “há um mês”, mas aponta um enorme buraco na zona mais próxima do local onde os banhistas solitários se instalaram, e diz: “Já está a ser completamente comida. Este buraco não existia, já está aberto. A duna está fragilizada e acabámos de gastar aqui um milhão de euros.”

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A APA está a alimentar artificialmente as dunas a sul da Cova-Gala, mas já há areia que desapareceu Tiago Bernardo Lopes

A APA desvaloriza a avaliação do arquitecto e activista. Primeiro, garante em resposta escrita ao PÚBLICO, a intervenção naquela zona não está concluída — foram depositados 45 mil metros cúbicos (m3) de areia e faltam ainda outros 55 mil m3, ou seja, só foi concluída 45% da operação prevista e a restante, se a agitação marítima deixar, deverá ser concluída até ao final do mês.

Quanto aos danos visíveis indica: “A APA e o empreiteiro estão a monitorizar a evolução da intervenção, estando a decorrer como esperado. Este tipo de intervenções de alimentação artificial tem normalmente associadas perdas iniciais de curto prazo associadas aos fenómenos de reajuste do perfil (até atingir o perfil de equilíbrio) e compactação da areia após deposição”, além de alguma “dispersão lateral por processos longitudinais para fora da zona de deposição.”

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Miguel Figueira e Eurico Gonçalves, fundadores do movimento SOS Cabedelo, junto às dunas que estão a ser alimentadas artificialmente pela APA Tiago Bernardo Lopes

A palavra “monitorizar” anda a irritar sobremaneira Miguel Figueira e Eurico Gonçalves, antigo campeão de surf e o outro rosto do SOS Cabedelo. Mas já lá vamos. Para já, é olhar a costa e ter a entrar-nos pelos olhos aquilo que os dois descrevem por palavras tantas vezes repetidas, que lhes saem sem hesitações.

As obras na linha costeira da Figueira da Foz — incluindo a extensão em 400 metros do Molhe Norte do porto marítimo, uma obra iniciada em 2008 — criaram um desequilíbrio brutal na costa. O areal da praia da Claridade, na cidade, a norte do porto e da foz do Mondego, cresceu tanto que fez com que esta se tornasse a maior praia urbana da Europa.

A sul de tudo isto o cenário é o oposto — a falta de sedimentos, impedidos de passar pelo extenso molhe, fez recuar a costa vários metros, fazendo desaparecer praticamente o areal em várias zonas da Cova-Gala e criando uma meia-lua bem pronunciada ainda mais para sul, onda antes não existia, porque a linha da costa estava muito mais à frente. “Não há falta de areia. Ela está é mal distribuída”, diz Miguel Figueira.

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A norte do porto, o areal não pára de aumentar, mas a sul a linha de costa está cada vez mais recuada, porque os sedimentos não conseguem passar Tiago Bernardo Lopes

O SOS Cabedelo nasceu em 2009, quando Eurico Gonçalves desafiou Miguel Figueira a lutar contra aquilo que os dois surfistas começavam a sentir na pele: as obras em curso estavam a alterar o leito do mar, a movimentação de sedimentos, aquilo a que chamam a “duna hidráulica”, submersa. Ao princípio, recorda o arquitecto, a batalha era pela garantia de que continuariam a ter as ondas que lhe ocupavam várias horas. “A comunidade surfista está habituada a seguir as areias, porque onde temos os melhores fundos de areias, é onde temos as melhores ondas. Esta procura da onda perfeita leva-nos, há 40 anos, a seguir atentamente, diariamente, esta dinâmica”, explica Miguel Figueira.

Logo a seguir vieram as preocupações ambientais. O recuo e avanço da costa, as areias acumuladas a norte que cobrem o “penedo de Buarcos, uma zona riquíssima de fauna e flora”, elenca o arquitecto. E o perigo na barra do porto, onde, segundo as contas da SOS Cabedelo, já morreram 15 pessoas em acidentes, desde 2009.

Tudo isto levou-os a procurar soluções e em 2011 estiveram na Austrália, para ficar a conhecer o sistema de bypass que, desde então, querem ver instalado na Figueira da Foz. Basicamente, é um sistema mecânico que retira a areia da zona Norte, onde ela está a mais, transportando-a par a zona Sul, onde está em falta. A diferença para as operações de reposição de sedimentos que têm sido feitas é que este sistema trabalha em contínuo. Não é uma operação pontual.

O SOS Cabedelo andou anos a insistir com todos os responsáveis que foram passando pelo poder político e a APA de que aquela era a melhor solução para a Figueira da Foz, mas foi só em 2021 que lhes deram razão.

A praia da Claridade, a norte do porto da Figueira da Foz, é a maior praia urbana da Europa Tiago Bernardo Lopes
Mas a sul do porto, para lá de Cova-Gala, praticamente não há areal e a duna precisa de ser reposta de modo artificial com regularidade Tiago Bernardo Lopes
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A praia da Claridade, a norte do porto da Figueira da Foz, é a maior praia urbana da Europa Tiago Bernardo Lopes

“Mitigação” a curto, médio e longo prazo

O Estudo de Viabilidade da Transposição Aluvionar das Barras de Aveiro e da Figueira da Foz, encomendado pela APA a um consórcio, que incluía a Universidade de Aveiro (UA), analisou diferentes soluções e concluiu que o bypass era a solução “economicamente mais viável”, para uma zona que, a sul da Cova-Gala, já apresentava taxas de recuo da costa de 3,5 metros ao ano.

Para os responsáveis do movimento cívico, parecia o início do fim de um longo processo, uma percepção reforçada pelo anúncio do então ministro do Ambiente, João Pedro Matos Fernandes, de que o bypass era mesmo para ser feito. O país já não queria voltar as costas ao mar — algo que nunca se faz, dizem, e que aprenderam muito cedo com os pescadores —, nem fazer dele o inimigo, mas aprender a adaptar-se às mudanças que ele próprio sofria, fruto, em grande parte, da intervenção humana.

Só que o balde de água fria veio logo a seguir: ao contrário do que o SOS Cabedelo esperava, a APA não tem qualquer intenção de avançar com a obra do bypass num futuro imediato e isso desespera os dois activistas. “Neste momento, a nossa maior preocupação é a urgência em avançar com a obra”, diz Eurico Gonçalves. “Queremos que se despachem”, reforça Miguel Figueira.

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A praia de Cabedelo, a sul do porto da Figueira da Foz, com um areal muito menos extenso que a praia urbana da Claridade, a norte Tiago Bernardo Lopes

Mas não será isso que vai acontecer. Em resposta escrita ao PÚBLICO, a APA explica que quando foi conhecido o resultado do estudo que apontou para o bypass como a melhor solução, já estavam em curso os procedimentos burocráticos para a operação de alimentação artificial do troço Cova-Gala/Costa de Lavos, a sul do porto marítimo, com 3,3 milhões de m3 de areia. “Só após a concretização dessa intervenção e a sua monitorização (fundamental para se avaliar a sua evolução, comportamento e eficácia) será possível avançar com a eventual solução de bypass fixo”, refere a APA.

E para que a “eventual” obra do bypass avance, terá ainda de ser precedida do seu próprio processo burocrático, acrescenta. Ou seja, concursos públicos, estudo de impacte ambiental, candidatura a financiamento...

A APA olha para o bypass — uma obra com validade mínima de 30 anos e custos de construção e operação para esse período estimados em 53 milhões de euros — como uma operação de “mitigação da erosão costeira” de “longo prazo”. Até lá, há a colocação de areia como a que está a decorrer a sul de Cova-Gala, com recurso a dragagem das areias do porto (solução de “curto prazo”) e a “alimentação artificial de elevada magnitude”, dos tais 3,3 milhões de m3, com um custo de 25 milhões de euros, e que é olhada como uma intervenção de “médio prazo”.

Miguel Figueira e Eurico Gonçalves não entendem por que não se avança já para o bypass. Nem porque querem monitorizar uma intervenção de colocação de areias que, acreditam, acabará por não ter sucesso, por não ser um processo contínuo. “Uma solução pontual não faz sentido. O mar trabalha todos os dias e nunca se cansa”, diz Miguel Figueira. “Então está tudo a arder e querem monitorizar a desgraça?”, questiona Eurico Gonçalves.

Esperar “faz sentido”

Mas Carlos Coelho, especialista em erosão costeira e coordenador dos investigadores da UA que participaram no estudo responsável pela identificação do bypass como a solução mais viável para a Figueira da Foz, defende a posição da APA. “Há alguns fenómenos e pressupostos admitidos durante este estudo que é possível que sejam discutíveis. Portanto, se pudermos aumentar o grau de confiança nos resultados, será o ideal”, diz.

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Miguel Figueira e Eurico Gonçalves no enorme buraco que se abriu já depois da reposição de 45% das areias que serão colocadas na duna a sul do 5.º esporão Tiago Bernardo Lopes

E isso, defende, poderá ser conseguido monitorizando a operação que a APA tem prevista de colocação de 3,3 milhões de m3 de areia — um volume “muito mais alargado” do que o que tem sido colocado em operações mais pequenas e que, por isso, acredita, vale a pena acompanhar e avaliar. “Diria que a posição da APA faz sentido, sim. É um investimento muito alargado e tudo o que vier contribuir para aumentar o grau de certeza nos resultados deve ser feito”, defende.

E não se corre o risco de, daqui a alguns anos, quando se avançar de facto para o bypass, o estudo que o escolheu seja considerado desactualizado e se defenda a necessidade de um novo? Ouve-se Carlos Coelho rir ao telefone. “Podemos eventualmente correr o risco de ter de actualizar os resultados do estudo. Mas diria que este estudo do bypass acaba por ser válido num período mais longo”, diz o investigador.

Olhando o mar revolto da Figueira da Foz, de onde saíram há poucas horas, depois de mais uma manhã a surfar as suas ondas, os dois fundadores do SOS Cabedelo não se conformam com estes argumentos. Não se convencem que valha a pena avançar para uma operação intermédia, com um custo do m3 de areia que dizem ser dez vezes superior ao que é previsto para o bypass, e com o ónus ambiental “da queima dos combustíveis fósseis, com as dragagens”.

“Toda a gente já concordou com o bypass. É o que está inscrito na política do Governo, nos estudos da universidade, é o que defende a cidadania. Mas depois dizem-nos que isto é só para daqui a sete anos, para 2030. Isto é absolutamente insensato”, acusa Miguel Figueira.

O PÚBLICO questionou o MAAC, que remeteu quaisquer esclarecimentos para a APA. O presidente da Câmara da Figueira da Foz, Pedro Santana Lopes, em resposta escrita, refere: "Nunca foi admitido nem faz sentido dizer que uma acção, importante mas conjuntural, como a da transposição de 3 milhões de metros cúbicos possa pôr em causa a intervenção estrutural do bypass. E os calendários foram estipulados e ditos. A nosso ver, demasiado longos mas, de qualquer modo, assumidos."

O SOS Cabedelo vai continuar a insistir numa mudança de posição de quem decide as intervenções na costa. “A transição que falta fazer é desta atitude da APA, que continua numa lógica reactiva. De cada vez que há um acidente na costa, lá vêm eles gastar mais uns milhões. Têm de inverter esta lógica de “correr atrás do prejuízo”, para passar a correr atrás da solução. Hoje em dia é disso que se trata. Sabendo qual é a solução, têm de se pôr ao caminho”, defendem.