Pides contra as famílias LGBT na Hungria: o veto da Presidente é um recuo de Orbán?
Encher a boca com os “valores europeus” e ter a Hungria sentada no Conselho Europeu é uma das coisas mais repugnantes que acontecem perante os nossos olhos.
A União Europeia não pode continuar a vangloriar-se dos “valores europeus” enquanto lá estiver a Hungria de Orbán. É verdade que foram instaurados processos pela Comissão contra a perseguição aos homossexuais na Hungria, uma constante da governação Orbán da qual a última "pérola" é a lei que permite denúncias de famílias LGBT por supostos “pides” anónimos – é o discurso do ódio e do cancelamento. Esta, sim, é a “cancel culture” que tem mais influência e provoca mais danos nos direitos humanos na Europa do que a outra, de que se calhar se fala mais.
Este sábado, a Presidente da República da Hungria, Katalin Novák, vetou a lei das denúncias anónimas com dúvidas sobre a sua utilidade legal e afirmando que “não fortalece, mas antes enfraquece a protecção dos valores fundamentais”.
A Presidente é do mesmo partido de Viktor Orbán, o Fidesz, e para ela “valor fundamental” é a Constituição húngara, que determina que a instituição casamento é só entre um homem e uma mulher. É uma activa militante do Fidesz, foi ministra, e chegou a ser vice-presidente do partido com a pasta das relações externas. Na Hungria, a Presidente da República é eleita pelo Parlamento.
A dúvida é agora se o Parlamento vai insistir em transformar em lei as denúncias anónimas em relação às famílias LGBT ou vai recuar em toda a linha em relação a uma lei que coloca a Hungria – mais do que já estava – fora do campo dos “valores europeus”. Encher a boca com os “valores europeus” e ter a Hungria sentada no Conselho Europeu é uma das coisas mais repugnantes que acontecem perante os nossos olhos.
É possível que este veto seja um “veto combinado” entre Orbán e Katalin Novák, perante uma lei que já tinha levado vários países, entre os quais Portugal, Espanha, França e Alemanha, a avançar para uma acção contra a Hungria. A menos que estejamos perante uma estreia: um sinal de grande divisão no partido de Orbán.
Não somos a Hungria, mas Portugal só aprovou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2010 e com quase toda a direita a votar contra. A bancada do PSD, composta por deputados escolhidos pela então líder Manuela Ferreira Leite, votou contra e apenas seis dos 81 deputados se abstiveram. O CDS votou contra. E até duas deputadas independentes eleitas pelo PS votaram contra.
Cheguei a pensar que em Portugal já não havia esse preconceito profundo quando José Sócrates ganhou em 2005 com maioria absoluta. Quem se lembra dessas eleições recorda que se difundiu na campanha – e chegou a todo o país – um boato de que Sócrates seria homossexual. Pedro Santana Lopes acabaria por utilizar a ideia, ainda que por meias-palavras, numa sessão de campanha com mulheres, em que as apoiantes de Santana diziam à boca cheia que Sócrates era gay.
Ainda hoje ninguém me tira da cabeça que Paulo Rangel perdeu as eleições directas no PSD em 2021, e deu a vitória por escassos votos a Rui Rio, por ter decidido assumir a sua homossexualidade. A campanha subterrânea e menos subterrânea dentro do PSD contra Rangel mostra que o país – que não contesta o casamento entre pessoas do mesmo sexo – é muito menos avançado do que gostaríamos de imaginar. Não há contrafactual nesta questão, mas se Paulo Rangel optasse por não tornar pública a sua orientação sexual teria sido eleito líder do PSD? Infelizmente, é muito provável que sim. Portugal ainda não saiu completamente do armário.