Moçambique enfrenta o pior surto de cólera da última década
Efeitos persistentes do ciclone Fredy ainda se fazem sentir na província da Zambézia, a mais atingida. Gonçalo Órfão, coordenador da Cruz Vermelha, diz ao PÚBLICO que “as necessidades são imensas”.
Quase um milhão de pessoas a precisar de ajuda e o pior surto de cólera da última década. Não são as únicas consequências, mas são o rasto mais visível dos efeitos persistentes da passagem do ciclone Fredy por Moçambique em Fevereiro e Março. O surto de cólera já vinha de antes, mas a inundação e a destruição provocadas pelas fortes chuvas e ventos deixaram águas estagnadas, pessoas sem tecto, danos no saneamento básico.
De acordo com os números do Escritório da ONU para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), divulgados na segunda-feira, e citados pela Lusa, 975 mil pessoas estão a precisar de ajuda, sendo que a província mais afectada é a da Zambézia, no centro do país, com mais de meio milhão de pessoas a precisar de auxílio. A cólera já matou desde Setembro do ano passado 124 pessoas, de acordo com a ONU.
“Pela minha experiência com o ciclone Idai [Março de 2019], as consequências agora foram muito idênticas; a imagem que se tem é muito idêntica. O Idai teve mais afectados, mas, na altura, não houve surto de cólera”, descreve por telefone ao PÚBLICO Gonçalo Órfão, da Cruz Vermelha Portuguesa, que está em Quelimane, capital da província da Zambézia, como coordenador no terreno do centro de operações da Cruz Vermelha.
A grande diferença em relação ao que aconteceu há quatro anos é a atenção mediática, que com o Idai foi muito grande e agora é bem menor, o que se reflecte na solidariedade internacional ou na sua carência em relação aos atingidos pelo Fredy.
“Temos grandes dificuldades para responder a todas as necessidades”, diz Gonçalo Órfão. “O rasto de destruição é enorme” e as “necessidades são imensas”, o que obriga as autoridades de saúde e as organizações humanitárias a terem de fazer algo de que ninguém gosta, escolher uns em detrimento dos outros, identificando os casos mais graves e só dando “aos que precisam mais”.
De acordo com os números do OCHA, trabalham actualmente no terreno prestando ajuda humanitária e auxílio de emergência 40 entidades, sendo metade delas organizações não-governamentais internacionais. Até agora, cerca de 300 mil pessoas beneficiaram de alguma forma de ajuda, um número ainda muito aquém dos 80% da população que se pretende atingir, segundo a agência das Nações Unidas. Mas tudo depende do financiamento: os cálculos do OCHA dizem que são precisos 125 milhões de euros para manter o auxílio emergencial no terreno.
Para Gonçalo Órfão, médico de imuno-hemoterapia que coordena a área de emergência da Cruz Vermelha portuguesa, “vai ser uma recuperação difícil e muito longa”. Nas áreas rurais, o mau tempo destruiu as machambas (campos cultivados), quebrou o ciclo alimentar e agravou as condições de subsistência, tornando “as famílias muito vulneráveis”.
A Cruz Vermelha Internacional, que está a trabalhar nos distritos mais rurais em ajuda à CV local, já tinha distribuído na semana passada mais de 300 kits familiares de abrigo, com lona, cordas, baldes e frascos do popular purificador de água Certeza.
“A limitação natural obrigou-nos a planear muito bem e intervir onde a resposta é mais rápida”, explica o médico português. A Federação Internacional da Cruz Vermelha trabalha com uma “equipa reduzida” composta por 280 voluntários moçambicanos, com duas pessoas que chegaram de fora com experiência em resposta rápida, Gonçalo Órfão como coordenador territorial e um especialista uruguaio que é o responsável de operação, a que se juntam membros da Cruz Vermelha belga e da francesa que já estavam a trabalhar em Moçambique. A juntar a esses, em Maputo, está ainda uma enfermeira especializada em saúde pública que assessora a equipa.
A boa nova, refere Gonçalo Órfão, é que, apesar de o número de casos de cólera continuar a subir e ainda se manter alto, nota-se uma tendência para descer, fruto de uma campanha de vacinação que na semana passada já tinha conseguido chegar a 80% da população – as autoridades de saúde moçambicanas dizem agora que precisam de mais dois milhões de doses da vacina para cobrir as áreas de risco mais elevado –, mas também da recuperação paulatina da água canalizada.
Uma informação confirmada esta terça-feira por José Paulino, do Instituto Nacional de Saúde de Moçambique, em declarações ao canal STV, citado pela Lusa. "O surto atingiu uma fase de pico entre a 12.ª e a 13.ª semanas epidemiológicas. Actualmente está numa fase descendente, apesar de termos alguns novos focos”, disse.