O lado obscuro da academia portuguesa
“Todos os homens são idólatras, uns da honra, outros do interesse e a maior parte do prazer.” Baltasar Gracián y Morales
Devido à sua enorme projeção internacional, científica (e ideológica), o "caso Boaventura" está a causar fortes reações no meio académico, e com grande repercussão na imprensa nacional e internacional, nomeadamente na América Latina. A prática de assédio sexual, que resulta do abuso de poder, é um assunto extremamente sério e esse tipo de denúncia merece toda a atenção por parte das instituições académicas e mesmo judiciais. A verdade deve ser totalmente apurada e os/as culpados/as deviamente punidos/as.
No entanto, há outros graves problemas na academia portuguesa que merecem a nossa atenção (ver, por exemplo, Andreia Sanches, PÚBLICO, 15/4/2023) a vários níveis:
a) Endogamia: existe a tendência de as universidades contratarem, em concursos manipulados, docentes/investigadores da ‘casa’, ou seja, os que fizeram o doutoramento na própria instituição. Na prática, são os orientadores a escolher os seus ex-orientandos.
b) Nepotismo: dentro das instituições, há ainda as estreitas e consanguíneas relações de poder (pais-filhos; marido-mulher; irmão-irmã; tios-sobrinhos), situação que potencia o favorecimento de parentes. Ou seja, as decisões académicas são feitas com base nas relações familiares, ferindo, dessa forma, o princípio ético da imparcialidade.
c) Financiamento de projetos de investigação e bolsas de doutoramento: o critério utilizado para se obter financiamento e bolsa não é, como deveria ser, a qualidade científica do projeto; é preciso fazer parte da ‘rede’, do grupo de interesse e de influências.
c) Publicação de artigos científicos: está relacionado com o item anterior; para publicar numa revista portuguesa é preciso fazer parte do grupo. Há situações concretas de propostas de artigos que foram recusadas por uma revista com fraca avaliação e que depois são aceites em periódicos de renome internacional (com avaliadores não comprometidos), com indexação máxima e alto fator de impacto.
d) E por último, mas não menos importante, concursos para progressão na carreira: aqui a situação adquire maior gravidade, pois marca a vida académica e profissional do docente/investigador. Aqui o ‘professor de topo’ (catedrático) da casa desempenha um papel crucial, pois é ele/ela que, junto com o reitor, define o júri dos concursos. Na maior parte dos casos, aliados aos ‘poderes instalados’ nas universidades, os membros do júri (externos e internos) decidem não pelo mérito científico-académico dos candidatos, mas pelos princípios de amizade, lealdade, trocas de favores (do ut des).
Os editais dos concursos, feitos à medida do candidato protegido, servem apenas para cumprir uma mera formalidade. Internamente, a eleição do reitor é uma variável política determinante – se o candidato estiver ‘do lado errado’ do apoio político ao reitor, dificilmente ganhará um concurso e, consequentemente, jamais atingirá a categoria de catedrático. Neste contexto, é pertinente referir que uma instituição que escolhe os seus associados e catedráticos por motivos outros que não pelo mérito absoluto, pelos exigidos e rigorosos critérios científico-académicos, está destinada ao fracasso. O resultado desses vícios é uma academia parola, preguiçosa, incompetente, improdutiva, sem visibilidade internacional, ou seja, uma academia medíocre (aurea mediocritas).
Para concluir, é primordial defender uma Universidade onde haja liberdade de expressão, de pensamento, mas, acima de tudo, autonomia, valorização do trabalho, da iniciativa, competência, respeito pela diversidade, no seu mais amplo sentido do termo. Todo o docente/investigador que desempenha, com dedicação, competência e responsabilidade, as suas funções de gestão, ensino, formação, investigação e publicação, espera, legitimamente, que o seu trabalho seja reconhecido e que possa progredir na carreira pelos seus próprios méritos científico-académicos. São estes os princípios basilares que devem pautar a atuação da academia portuguesa, hoje e no futuro.