Quanto vale o meu útero?
O caso de Ana Obregón e o diploma de regulamentação da gestação de substituição em Portugal.
A 28 de março, a revista ¡Hola! noticiou que a atriz e socialite espanhola Ana Obregón seria avó aos 68 anos, resultado de uma gestação por “barriga de aluguer”. Mais concretamente através de uma inseminação post-mortem, com recurso a sémen pertencente ao filho falecido da atriz, num serviço contratualizado nos Estados Unidos. Por lá, o aluguer do útero e da consequente capacidade reprodutiva de mulheres pode rondar os 125 mil euros. A recém-nascida foi exibida ao mundo na capa da revista espanhola, um negócio publicitário que, ao que tudo indica, terá rendido a Obregón um milhão de euros.
Obregón fez tudo isto às claras e com ampla cobertura mediática em Espanha, um país onde a gestação de substituição não está regulamentada, não é negócio ou prática legal, e onde é inclusive descrita por membros do Governo como uma “forma de violência contra mulheres”.
Como é que isto é possível? Bom, comecemos dentro de portas.
Em Portugal, a gestação de substituição está também por regulamentar, mais de um ano depois de a lei ter sido publicada em Diário da República. O Ministério da Saúde finalizou a proposta de diploma que virá a regulamentar a prática e que se encontra, até o final de abril, em fase de audições pelo Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, Ordem dos Médicos, Ordem dos Enfermeiros, Ordem dos Psicólogos Portugueses e Ordem dos Biólogos.
Ao que o PÚBLICO apurou, a proposta do Governo vem esclarecer questões relacionadas com a guarda e o registo da criança. Em breve o documento seguirá para Conselho de Ministros e aproxima-se o dia em que qualquer pessoa poderá cumprir o seu desejo de paternidade ou maternidade através do corpo de outra mulher. Há quem chame a isto progresso. Sobre isso discordaremos e dificilmente o poderemos qualificar como arrojado ou surpreendente.
Afinal, Portugal é já parte do circuito de desova das “barrigas de aluguer”. A história de Rupert Marye, norte-americano de 40 anos que contratou os serviços de uma clínica de gestação de substituição ucraniana e cujo filho nasceu em Portugal no verão do ano passado, veio desmascarar o mercado pútrido e lucrativo que se estabeleceu entre fronteiras. Pais beneficiários acompanham gestantes estrangeiras para parir em Portugal, onde a prática da gestação de substituição não está regulamentada, e atravessam a fronteira com uma criança que, para todos os efeitos legais, é sua. A regra, como em tudo o resto, é explorar a pobreza e a fragilidade de muitas para o benefício de uns poucos.
Porque não só de força de trabalho se faz mercadoria, também as mulheres e as meninas podem ser amplamente lucrativas meramente em razão de serem. Da indústria do sexo ao mercado de “barrigas de aluguer”, a troca comercial legitima todas as violências. Clínicas como a Feskov, a utilizada por Rupert, submetem as mulheres, frequentemente denominadas apenas “gestantes” ou “colaboradoras”, a mais de nove meses de vigilância e controlo intensivo e invasivo sobre a sua vida, a sua alimentação e a sua rotina. Dependendo das empresas e dos contratos, a mulher perde parte ou a totalidade dos seus direitos sexuais e reprodutivos, é impossibilitada de decidir sobre se e quando abortar e inclusive sobre o país ou o tipo de parto a que será sujeita.
Das infames “fábricas de bebés” da Índia, cujo negócio transnacional movimentava mais de mil milhões de dólares por ano antes de ser proibido em 2015, e onde mulheres pobres viviam o período de gestação em complexos dormitórios gigantescos apelidados de “fábricas”, ao Camboja, à Tailândia e ao Nepal, são as miseráveis condições de vida de uma grande parte da população, em particular de mulheres e meninas, e uma relação de dominação e exploração imperialista entre o país beneficiário e o país de origem das mulheres que enformam as regras da procura e da oferta. Se certamente importantes, de pouco ou nada serviram as novas legislações proibicionistas nestes países no que a esta prática diz respeito: os dados referentes ao tráfico de bebés mantêm-se muito elevados e as mulheres gestantes vivem em condições precárias, na clandestinidade e sujeitas a pesadas penas por tráfico humano, ao passo que nada acontece aos compradores de bebés.
São estas mulheres cujos úteros alugamos a preço de mercado: mulheres como a jovem cubana que gestou a neta de Ana Obregón em Miami, uma massa de mulheres invisíveis, pobres e consumidas por uma indústria que compra e vende vida humana. Esta é, afinal, a consequência lógica da expansão capitalista: a liberdade já não é a emancipação coletiva, é a participação do indivíduo no mercado.
Este pressuposto é evidente na argumentação favorável à gestação de substituição e à indústria alargada da reprodução humana. Para os seus simpatizantes, estas mulheres optam por avançar com a gravidez livres de coação e negociam os termos do acordo em pé de igualdade com os beneficiários e/ou as clínicas e empresas. De pouco ou nada importa que o Ocidente tenha “terceirizado” a sua reprodução nas nações pobres, assim como anteriormente terceirizou a sua produção industrial, ou que trocar dinheiro por bebés seja internacionalmente reconhecido como tráfico de seres humanos – afinal, não temos todos (leia-se: cidadãos ricos de países ocidentais) direito à paternidade e à maternidade? Bem, não.
O “direito” à descendência biológica é uma falácia e o direito à maternidade parece não incluir as mães que não conseguem encontrar vagas nas creches em Portugal ou aquelas cujas urgências de ginecologia-obstetrícia e/ou bloco de partos da sua área de residência foram recentemente encerrados.
Aliado a tudo isto, importará relembrar que a lei aprovada em Portugal diz respeito apenas à chamada gestação de substituição altruísta: essa tal generosidade infinita que parece acompanhar o resto dos órgãos sexuais e reprodutivos que nos tornam incubadoras de eleição para os bebés dos outros. No fundo, de acordo com a lei portuguesa e outras semelhantes, se não há dinheiro visível envolvido, não há exploração.
Além da impossibilidade de assegurar a ausência de qualquer transação económica, em particular num cenário de agravamento das condições de vida que afeta especialmente as mulheres, sobretudo as mais jovens (e, portanto, de idade fértil), sabemos que a coação não é apenas de natureza financeira. A subjugação das mulheres no sistema vigente, em Portugal e no resto do mundo, coloca-nos numa posição de excecional vulnerabilidade para abusos e violências, em particular às mãos de familiares do sexo masculino.
Ora, as organizações de mulheres não foram convidadas a partilhar contributos sobre este regulamento. Felizmente para nós, estamos habituadas a opinar sem convite. O movimento histórico de mulheres reivindica a emancipação coletiva e recusa a mercantilização dos nossos corpos. Não aceitamos ser reduzidas a incubadoras, objetos de fetiche ou mercadorias e, pela parte da Rede de Jovens para a Igualdade, continuaremos a bater-nos pelo desmantelamento das indústrias que lucram com a nossa exploração, consumo e desumanização.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico