Associações ciganas avançam com primeiro acto de protesto contra Governo

Indefinição do executivo sobre quem fica com a tutela da integração da população cigana revolta dirigentes de nove organizações.

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Nelson Garrido

Pela primeira vez, um grupo de associações ciganas protagoniza um acto de protesto contra o Governo. Prepara-se para, nesta terça-feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, ler um manifesto sobre o seu “desagrado pelo tratamento que tem sido dado à temática dos portugueses ciganos”. Em causa está um volte-face “inaceitável” sobre a tutela desta área e o prazo "irrealista" da nova Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas.

Nos últimos anos, as associações exteriorizaram por diversas vezes o seu desconforto por esta área estar na alçada de um organismo chamado Alto Comissariado para as Migrações. Antes desse organismo público ter sido criado, em 2014, houve o Alto Comissariado para a Imigração e as Minorias Étnicas (1996) e o Alto Comissariado para a Imigração e o Diálogo Intercultural (2002).

No dia 31 de Janeiro, onze associações estiveram em Torres Vedras numa reunião com a ministra adjunta e dos Assuntos Parlamentares, Ana Catarina Mendes. “Ela prometeu que o ACM não iria terminar e que haveria de se proceder a uma mudança de nomenclatura para acolher a temática dos portugueses ciganos”, conta Bruno Gonçalves, vice-presidente da associação Letras Nómadas. Isso mesmo disse a alta-comissária Sónia Pereira em entrevista ao PÚBLICO, no final de Fevereiro.

Já no dia 5 de Abril, as associações tiveram uma reunião online com a secretária de Estado da Igualdade e Migrações, Isabel Almeida Rodrigues. Ficaram então a saber que, afinal, o ACM fundir-se-ia com a nova Agência para as Migrações e o Asilo. “Ela informou-nos de que passaríamos para a CIG [Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género]. Ficámos surpreendidos. A CIG é muito direccionada para as questões de género. Pedimos que migrasse para lá o Núcleo de Apoio às Comunidades Ciganas [a equipa especializada do ACM, formada por seis pessoas]. Ela disse que sim, se fosse esse o desejo dos funcionários.”

Logo no dia seguinte, o Governo aprovou a criação da Agência para Minorias, Migrações e Asilo. No comunicado que saiu do Conselho de Ministros, nem uma referência à população cigana. Questionado pelo PÚBLICO sobre o que aconteceria àquela área, até agora não veio resposta do gabinete de Ana Catarina Mendes.

“Hoje é, amanhã não é, isto só cria instabilidade, não podemos ser tratados assim, estamos tristíssimos”, reage Bruno Gonçalves. “Portugal assinou a Convenção-Quadro para a Protecção das Minorias Nacionais [em 2001], mas nunca assumiu que tem alguma minoria. Quem são as minorias?”, questiona, lembrando que tal implica criar um estatuto. “Na conferência de imprensa nunca falaram nos ciganos. Se nos consideram uma minoria nacional, isso tem de ser assumido. E se for assumido, não queremos um núcleo, queremos um departamento.”

“Portugal não assume de forma clara que há minorias no seu território, a adopção do termo 'minorias' foi para facilitar o processo da APMMA?”, questionam no documento, que pretendem ler na Gulbenkian, num encontro sobre planos locais para a integração organizado pelo ACM. “Esta indefinição do Governo não é saudável. Além de criar apreensão, traz muita instabilidade aos laços e sinergias criados.”

O manifesto foi subscrito por nove entidades: Associação de Mulheres Ciganas Portuguesas, Letras Nómadas, Ribaltambição, Sendas e Pontes, Sílaba Dinâmica, Raízes Tolerantes, Associação Cigana de Coimbra, Costume Colossal e Agarrar Exemplos. Além de considerarem o referido volte-face “inaceitável”, julgam "irrealista" o prazo anunciado para começar a executar a nova estratégia nacional.

A estratégia 2013-2018 já tinha sido prorrogada para 2022 e há uns meses a sua vigência foi dilatada para Junho de 2023. Questionado pelo PÚBLICO sobre quando haveria nova estratégia, o Governo indicou o segundo semestre. Esse mesmo prazo foi reiterado pela ministra Ana Catarina Mendes em resposta ao repto lançado pelo Presidente da República no sábado, 8 de Abril, Dia Internacional das Pessoas Ciganas.

No seu manifesto, os dirigentes associativos alegam que, mesmo que na mente da ministra esteja o fim do ano, nesse prazo “será difícil elaborar uma nova estratégia tendo em conta que ainda não foi iniciada a avaliação externa”, um processo que lhes parece fundamental para delinear esta. “As associações ciganas não podem aceitar uma nova Estratégia Nacional elaborada em cima do joelho.”

“Há um caminho enorme a fazer”, resume Bruno Gonçalves. “Isto é o nosso processo. Nós também somos peças importantes neste puzzle. É preciso que haja consideração pelo movimento associativo cigano.”

Maria José Casa-Nova, até há pouco coordenadora do Observatório das Comunidades Ciganas, considera ser “possível" a nova estratégia entrar em "funcionamento até ao final do presente ano civil”, se esta for sendo “elaborada à medida que a avaliação vá sendo realizada”. “Existem dados para alguns dos eixos que continuam a ser estruturantes, nomeadamente na Educação, na Habitação e na Formação Profissional, tendo em vista a integração no mercado de trabalho globalmente considerado. Com os dados existentes é possível delinear a Nova Estratégia no que concerne a estes eixos.”

Sobre o novo organismo, aquela professora da Universidade do Minho defende que “a área da integração da população cigana portuguesa deverá ter estatuto de Departamento ou Direcção em função da organização interna que a Agência vier a ter”. “Não pode ficar novamente subsumida num núcleo ou similar. E deverá ter recursos humanos e financeiros compatíveis.”

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