O Estado como coutada
Mais grave do que a falta de pudor, grosseria ou leviandade que tanto dizem do recrutamento dos nossos políticos, é o que isto nos diz da forma como os nossos governantes olham para o Estado.
Numa crónica maravilhosa publicada há muitos anos no semanário Expresso (e que, como já perceberão, nunca me saiu da cabeça), o escritor brasileiro Luís Fernando Veríssimo narra a história de Ataíde, um simpático brasileiro de meia-idade (efabulo) que achou divertida a ideia de colocar um microfone no elevador do prédio para ouvir o que os amigos diziam ao chegar ou ao sair do seu apartamento. Leonor, sua mulher, mais assisada, bem avisou: “Vai dar galho, Ataíde.” Mas nada feito. A ideia avançou mesmo. Para desespero de ambos como já veremos. Pouco tardou, de facto, para que o casal se visse confrontado com um sem-número de revelações e comentários muito pouco abonatórios ou simpáticos. O Ataíde estava “cada vez mais chato” e “meio acabadão” por “ter de aguentar a Leonor”. O salmão, sempre repetido nos jantares do casal, era péssimo, mas pior era o pernil “remolado pra peixe” que, ouvido o desabafo no elevador, em tempo recorde Leonor tratou de substituir. A história acaba como era previsível que acabasse. Rendidos às evidências, Ataíde e Leonor desistiram do microfone escondido. Há revelações que é melhor não conhecer.
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