Início da década de 1960, Lisboa. Sobe ao palco do Coliseu dos Recreios Zurita de Oliveira para interpretar a canção O Namoro da Vovó. “Agora não é como outrora, no portão ninguém namora”, canta, acompanhada pela própria viola. Entre o público, os solos de guitarra eléctrica pelas mãos de uma mulher ainda faziam abrir bocas de espanto.
Em 1954, aos 23 anos, Zurita de Oliveira foi a primeira mulher (de que há registo em Portugal) a escrever, interpretar e gravar uma música em ritmo rock. O pioneirismo que marca a sua vida foi uma entre várias razões que despertaram a curiosidade da realizadora Francisca Marvão.
Foi durante a produção do seu último filme, Ela é uma Música, sobre a presença (ou ausência) das mulheres no rock português, que conheceu o nome de Zurita. Foi procurando mais e mais sobre a vida da artista, e aí percebeu que Zurita não tinha herdeiros na Sociedade Portuguesa de Autores e que a sua editora discográfica, a Movieplay, faliu. Os arquivos da sua obra são quase inexistentes.
“Fiquei revoltada, era quase como se ela não existisse. Como é que esta pessoa simplesmente desapareceu? Senti que, mais uma vez, uma mulher foi esquecida”, conta, em conversa com o P3. “Por isso decidi armar-me em detective e começar uma aventura” — um novo filme chamado Quem tem medo de Zurita de Oliveira?
Zurita era meia-irmã do actor Camilo de Oliveira e neta de Júlia Arjona, conhecida como Julieta Rentini. Cresceu entre os artistas da Companhia de Teatro Rentini e estreou-se em palco aos 15 anos, sempre com o sonho de cantar. Aos 30 anos, lança o EP Bonitão do Rock pela editora Alvorada.
“Para mim, é uma mulher revolucionária. Ela deu-nos muito. Contaram-me que nos concertos muita gente ficava de boca aberta quando ela fazia um solo de guitarra eléctrica, não era algo que se visse naquela altura”, partilha Francisca Marvão. “Também deve ter passado as passinhas do Algarve, o seu percurso não deve ter sido tão fácil como seria para um homem.”
Num mundo de homens, numa indústria de homens, e numa altura em que o rock ainda era uma “coisa nojenta”, “pornográfica”, que “desviava as mulheres” (palavras do pai de Maria Teresa Horta, na década de 1960), “não havia ninguém como Zurita”.
Depois do Bonitão do Rock, Zurita de Oliveira escreveu e compôs fados para Ada de Castro, de quem era amiga, mas não voltou a gravar as próprias músicas. Depois de 1974 e até ao final da vida, em 2015, a sua presença na música parece esfumar-se.
Francisca Marvão questionou quem conheceu Zurita sobre a sua vida pessoal, mas as conversas terão sido, em grande parte, infrutíferas. “Descreveram-na como uma pessoa introvertida e fechada, que se transformava em palco" e pouco mais.
Além de recuperar o nome de Zurita e de o levar dos palcos aos cinemas, a realizadora de 39 anos quer manter acesa a discussão sobre a desigualdade de género que ainda hoje existe na música e nos cartazes de festivais. "Porque é que continuam a ser tão poucas as mulheres no rock em Portugal?" é uma inquietação para a qual ainda não encontrou resposta.
O filme Quem tem medo de Zurita de Oliveira?, com produção da associação cultural Uma Ova, deverá estrear-se no próximo ano, 2024. Conta com o apoio financeiro da Câmara Municipal de Alcanena (cidade natal de Zurita) e de Loulé, além do apoio técnico da Universidade Lusófona e do Estúdio King, de Nick Suave.