Acidentes com motos aumentaram. Uma academia quer formar motociclistas para “salvar vidas”

Tirar a carta de condução não é sinónimo de “saber conduzir”, por isso a Academia de Condução Moto traçou um plano para diminuir a sinistralidade das motos. Porque cada vida poupada é uma conquista.

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A atitude dos formadores é importante na aquisição de competências, mas também para gerar confiança ACM
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As motos guiam-se com os olhos. É um princípio básico que nem todos os motociclistas conhecem e apenas um exemplo que demonstra a dificuldade. Conduzir uma moto não é o mesmo que conduzir uma bicicleta e é muito mais difícil do que conduzir um carro. Tudo é diferente, começando pelo óbvio: duas rodas exigem um equilíbrio que se dispensa com quatro. Depois, os motociclos não têm pára-choques e, para terminar, tendem a atingir velocidades muito elevadas. Os motociclos podem ser armas letais.

Segundo os dados disponibilizados pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), entre Janeiro e Novembro de 2022 o número de acidentes com motociclos e ciclomotores subiu 13,2% em relação ao ano anterior, tendência que acompanha o crescimento das vendas destes veículos (dados da ACAP – Associação Automóvel de Portugal). Há, portanto, cada vez mais motos na estrada a fazer mais vítimas.

Não vale a pena fingir que não há perigo. Quem anda de moto deve assumir o risco em troca do prazer ou da conveniência, e ao mesmo tempo resistir o mais possível à ideia de que “vai correr tudo bem”. A melhor defesa é a prevenção e, no caso particular das motos, o equipamento (capacete, casaco, luvas, botas, etc.), o treino constante e a formação.

Tal como acontece com os automóveis, quem tira a carta de motociclo não deve ter a pretensão de que sabe conduzir com segurança. Treinar o olhar, a posição do tronco e das pernas, das mãos e dos pés exige tempo e persistência, algo que, sem dados estatísticos de suporte, se adivinha pouco habitual nos motociclistas. Acelerar é muito fácil, o difícil é parar ou curvar sem cair. Corrigir hábitos adquiridos ou mal aprendidos e acabar com os vícios exige disciplina. E consegue-se mais facilmente, pudemos testemunhar, com ajuda.

Ganhar confiança com disciplina

O PÚBLICO foi convidado a participar num fim-de-semana de formação da Academia de Condução Moto (ACM), entidade fundada por Domingos Simões em 2020, o primeiro ano da pandemia que fez aumentar o número de motos na estrada. A ACM ambiciona melhorar as competências e o comportamento dos condutores e, o mais importante, “salvar vidas”. É assim dito por Domingos Simões, militar da GNR agora na reserva, com uma vida profissional dedicada à formação na Unidade Nacional de Trânsito e na Escola da Guarda. Convidou seis dos seus alunos, também militares com experiência no ensino dos motociclistas da GNR e, juntos, estão a formar mais de 600 pessoas por ano.

As sessões decorrem ao fim-de-semana e estão distribuídas por três módulos de sete horas cada um: o primeiro é sobre a condução com obstáculos, o segundo sobre condução em estrada e o terceiro sobre técnicas de travagem. A ACM está a organizar um quarto módulo sobre condução com passageiro. Os módulos são adquiridos avulsos (80 euros cada um) e é recomendado que se comece pelo primeiro — o módulo um é, porventura, o mais difícil; consulte os detalhes aqui.

Os ganhos são imediatos, a meio do dia já se nota a diferença, como nos testemunharam duas das participantes. Vilma Jordão, engenheira informática de 36 anos, fez este módulo pela segunda vez, por achar que “ia aumentar o à-vontade na condução”, uma diferença que se notou “como do dia para a noite” no final da sessão.

Inês Elvas sentiu o mesmo: “Adquirimos capacidades muito rapidamente. Cheguei ao fim do dia cheia de confiança.” Esta enfermeira de 46 anos sublinha a importância da repetição num ambiente controlado, acção reforçada pela atitude dos formadores, não fossem eles militares: “Roda a cabeça”, “tira daí a mão”, “olha esses pés!” são gritos de ordem que são aplicados no ego com a pressão necessária. “Sinto a disciplina e a correcção que faz automatizar o crescimento e a boa prática”, afirma.

A formação inclui condução com obstáculos facebook.com/acm2r
Formação da ACM na Malveira facebook.com/acm2r
Formação da ACM na Malveira
A formação inclui condução em grupo facebook.com/acm2r
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A formação inclui condução com obstáculos facebook.com/acm2r

Os participantes são pessoas de todas as idades e preferências. Vemos ali scooters, desportivas e motos grandes de turismo e todo-o-terreno, conduzidas por homens e mulheres na casa dos 20 e por quem já se diz sénior. João Martino já está reformado, tem 67 anos e conduz motos há 53. Partilhou connosco a mistura de frustração e alegria: “Nem a meio do primeiro módulo fiquei muito triste por pensar que não sabia conduzir motos. E no fim fiquei muito satisfeito.” Notou progressão imediata, já que “são sete horas a bater”. “Quem vier aqui com espírito para aprender alguma coisa sai daqui a saber utilizar alguns desses conhecimentos, mas não consegue utilizar tudo porque os vícios são muito fortes. Talvez com o tempo” e com a repetição, acrescenta.

António Fonseca, formador na ACM, completa a ideia: “Já tivemos aqui muitos motociclistas que já conduzem há 20 ou 30 anos que no final do dia nos dizem que, afinal, não sabiam andar de moto. Saem daqui radiantes. Temos formandos que já fizeram isto ‘dez vezes’.” A repetição é importante, bem como a atitude. “Há muitos motociclistas que precisam de um empurrão. À primeira, alguns desconfiam, mas depois alinham connosco”, diz o militar de 45 anos, que identifica a confiança (no próprio e no formador) como pilar fundamental. “Por muitos vídeos no YouTube que a gente veja, se tiveres alguém que te acompanhe, é muito mais fácil”, acrescenta. “Há pessoas que chegam aqui com muitas dificuldades, com medos e receios, que desaparecem ao final do dia.” Confirmamos a atenção, persistência e resultado final.

É inevitável comparar o que aqui se faz com a formação de base. António Fonseca entende que a formação nas escolas é insuficiente, mas não aponta o dedo. “As escolas não podem fazer muito, não é em 12 horas [número de aulas práticas requeridas para exame] que se consegue pôr um motociclista a andar em condições”. “O que nós aqui fazemos é o que as escolas deviam ter como base...”, afirma.

É esse o sentimento dos participantes. “Nas aulas de condução não aprendi nada disto. Para mim, é tudo novo”, diz Vilma Jordão; e Inês Elvas dá-nos um exemplo demonstrativo: “Tirei a carta há 20 anos e, quando adquiri recentemente uma moto, comprei uma aula de condução e até estava disposta a comprar mais, mas o instrutor disse-me: ‘Você precisa é de andar’, ‘não gaste dinheiro aqui’”. “Isto não é ensinar”, diz Inês, que entende que a entidade (as escolas de condução) que devia garantir a capacidade técnica e a segurança não o faz.

As pausas são importantes para descansar o corpo e as motos, mas são aproveitadas para ensinar coisas práticas, tais como colocar uma moto no descanso central facebook.com/acm2r
Também é explicado como proceder em caso de acidente facebook.com/acm2r
O que fazer quando encontramos um motociclista acidentado? facebook.com/acm2r
As acções da ACM contam com o apoio dos motoclubes regionais. O almoço de sábado foi servido nos Abobras facebook.com/acm2r
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As pausas são importantes para descansar o corpo e as motos, mas são aproveitadas para ensinar coisas práticas, tais como colocar uma moto no descanso central facebook.com/acm2r

A formação adicional para motociclistas em Portugal não é um exclusivo da ACM, mas a oferta é relativamente limitada — existem algumas escolas de todo-o-terreno (off road), associadas a marcas (BMW, Honda) ou dedicadas à condução em pista (Autódromo do Algarve).

A GNR efectuou, até 2019, acções de formação gratuitas para “aperfeiçoamento na condução” de veículos de duas rodas. Questionado sobre a continuidade destas acções, o chefe da secção de Formação Contínua da GNR disse ao PÚBLICO que existe “uma extensa lista de espera” e que, por isso, as inscrições se encontram suspensas. O major António Maio acrescenta, em resposta enviada por email, que as formações serão retomadas em breve, sublinhando o empenho da Guarda na “redução do número de acidentes envolvendo veículos de duas rodas a motor”.

O responsável da ACM, Domingos Simões, não sabe dizer por que não há mais oferta formativa em Portugal, mas é possível ler nas suas palavras algumas pistas. O custo e complexidade é um desafio que, com o tempo, ganhou um alcance alargado. Já tem o apoio sólido da Junta de Freguesia de Cortegaça (Ovar) e da União das Freguesias de Malveira e São Miguel de Alcainça, bem como o envolvimento com os motoclubes, que estas acções ajudam a dinamizar.

Além da formação oferecida a dois ou três membros, nos dias de formação na Malveira os almoços são servidos nos Abobras e Relíquias d'Oeste; custam 15 euros e são pagos directamente aos motoclubes. Algumas marcas e entidades juntaram-se ao projecto, fornecendo apoio logístico. “Entidades como o IMT e a ANSR não nos apoiam, mas temos um bom relacionamento. Estão-se a abrir portas...”

Domingos Simões diz ainda que a ACM não foi criada com o objectivo de fazer dinheiro. “Já me desafiaram a ter metade das pessoas e a cobrar o dobro do preço, ganhava o mesmo. Mas assim chegamos a mais pessoas...” Relativamente ao preço, o fundador da ACM acha que as aulas não são caras. “Uma hora numa escola de condução custa 25 euros, aqui um dia inteiro [cerca de sete ou oito horas] custa 80”. Além disso, vão aonde for preciso. Em Maio, vão estar em Ponte de Sor. “O motoclube juntou um grupo de interessados e obrigam-nos a lá ir”, diz-nos. Os lugares para este evento estão esgotados.

Aprender devagar

Os dias são passados sempre “em primeira” (mudança), ali algures entre os 10 e os 15 km/h, a contornar cones de sinalização e obstáculos, mas também acontece aquilo a que podemos chamar “pausas úteis”. A ACM introduz na formação momentos em que explica conceitos e indicações que devem fazer parte da cultura geral dos motociclistas: o que fazer quando encontramos alguém que teve um acidente de moto, como levantar uma moto do chão, como remendar um pneu ou cuidar da corrente são algumas delas.

E porque a responsabilidade e o respeito por todos os que andam na estrada são princípios fundamentais, a academia desenvolve ainda acções de sensibilização junto da comunidade escolar, onde há ou de onde vão sair, quase sempre, novos adeptos das duas rodas.

A formação suplementar é essencial — e é quase sempre melhor ter alguma formação do que não ter nenhuma — para tornar os condutores mais conscientes e tecnicamente instruídos. Domingos Simões diz que sempre que morre um motociclista sente que falhou. Não será justo que carregue com esse peso às costas, mas foi o sentimento que transformou em mote: “Ajudamos a salvar vidas.” Basta que seja uma.


O PÚBLICO participou nesta formação a convite da ACM

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