Vaticano repudia as bulas que legitimaram a conquista das Américas

Emitidas no século XV, no contexto da expansão portuguesa e espanhola, tornaram-se respaldo religioso para a expropriação dos territórios dos povos indígenas e para a sua evangelização forçada.

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O Papa Francisco pediu perdão o ano passado aos povos indígenas do Canadá GUGLIELMO MANGIAPANE/REUTERS

O Vaticano repudiou esta quinta-feira, numa declaração conjunta do Dicastério para a Cultura e a Educação, dirigido pelo cardeal Tolentino Mendonça, e do Dicastério para o Desenvolvimento Humano Integral, as bulas papais que, no século XV, foram usadas para legitimar a doutrina das descobertas. Foi através delas que os impérios de Portugal e de Espanha justificaram a expropriação dos territórios dos povos indígenas a que os conduzira a expansão marítima.

Surgindo em resposta ao pedido de vários grupos indígenas para que o Papa retirasse as bulas publicadas no contexto da expansão europeia para as Américas,​ o comunicado, não as rescindindo, reconhece que Dum Diversas, de 1452, e Romanus Pontifex, de 1455, emitidas por Nicolau V, bem como Inter Caetera, de 1493, responsabilidade de Alexandre VI e antecâmara do Tratado de Tordesilhas firmado entre Portugal e Espanha no ano seguinte, “não reflectiam adequadamente a igualdade de dignidade e direitos dos povos indígenas”.

Ao legitimarem, com fundamento da Santa Sé, a apropriação “das propriedades nas terras colonizadas” por parte da Coroa portuguesa e espanhola, “subjugando as populações originárias”, as Bulas abriram caminho para a chamada doutrina das descobertas, lemos no comunicado, citado pela publicação eclesiástica Sete Margens.

“Que no nosso tempo a fé católica e a religião cristã sejam exaltadas e por toda a parte aumentadas e difundidas”, líamos em Inter Caetera, “que a saúde das almas seja cuidada e que as nações bárbaras sejam derrubadas e trazidas à própria fé”. As Bulas justificavam a expropriação das terras numa lógica de expansão da fé cristã. Na própria ideia de “descobrimento” estava implícita a menorização dos povos indígenas. Não eram terras desconhecidas da Humanidade, obviamente, mas terras desconhecidas pela Cristandade e que, assim sendo, podiam ser reclamadas pelo país cristão que primeiro nelas acostasse, desde que os povos que nelas habitassem fossem evangelizados.

O comunicado do Vaticano defende que as Bulas foram manipuladas “para fins políticos pelas potências coloniais em competição entre si para justificar actos imorais contra as populações indígenas, por vezes realizados sem a oposição das autoridades eclesiásticas”. Afirma, assim, ser “justo reconhecer esses erros, reconhecer os terríveis efeitos das políticas de assimilação e a dor sentida pelos povos indígenas e pedir perdão”.

Num texto enviado ao Vatican News, o cardeal Tolentino Mendonça enquadra o comunicado desta quinta-feira num quadro de “diálogo renovado entre a Igreja e os povos indígenas”. Em Julho do ano passado, o Papa Francisco deslocou-se ao Canadá para pedir perdão "pelo mal cometido" contra os povos indígenas do país, em particular nos internatos católicos, já no século XX, e pela "destruição cultural" em que colaboraram membros da Igreja. Antes, em 2015, na Bolívia, o Papa pedira perdão, em nome da Igreja, “pelos muitos pecados graves cometidos contra os povos nativos da América em nome de Deus durante a chamada conquista da América”.

As implicações das Bulas perduram no tempo, como recorda a Associated Press. Nos Estados Unidos, em 1823, o Supremo Tribunal determinou a legalidade da propriedade e soberania do Estado americano sobre os territórios indígenas, justificando-a com o facto de terem sido “descobertos” pelos europeus. O mesmo princípio legal foi invocado já este século, em 2005, na decisão do Supremo Tribunal perante uma acção judicial interposta pela nação indígena Oneida, que habita hoje o Wisconsin.

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