O que é um surto psicótico e porque é que “associação entre doença mental e violência não existe”?

A Polícia Judiciária admite que o autor do ataque no Centro Ismaili, em Lisboa, terá tido um “surto psicótico”. Mas o que é uma psicose? O que fazer quando alguém passa por um surto?

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Um homem matou duas mulheres, funcionárias do Centro Ismaili, em Lisboa. A PJ admite que terá sofrido um surto piscótico Rui Gaudencio

A Polícia Judiciária (PJ) afirmou na manhã desta quarta-feira que "não há o mínimo indício" de que o crime cometido um dia antes no Centro Ismaili, em Lisboa, tenha tido motivação religiosa ou política, estando afastado o crime de terrorismo. Segundo a PJ, a investigação deste ataque que vitimou duas mulheres, de 49 e 24 anos, aponta para a ocorrência de um "surto psicótico".

"Estamos perante um momento de um surto psicótico, que terá levado a que este trágico acidente possa ter ocorrido", afirmou Luís Neves, director nacional da PJ. Tudo indica "um crime de natureza comum", mas "só uma perícia psiquiátrica" poderá, de facto, confirmar "o que está em causa".

Para perceber o que é um surto psicótico, o que pode estar na sua origem e como reagir, o PÚBLICO falou com a psicóloga Mariana Reis Barbosa, dedicada à área de direitos humanos e ao apoio a migrantes e refugiados; e com a psiquiatra Sara Vilas Boas, especialista no tratamento da psicose e em psiquiatria transcultural.

O que é um surto psicótico?

Um surto psicótico é um episódio agudo de perturbação mental que se caracteriza, de um modo particular, por alucinações (falsas percepções, como a de ver ou ouvir algo que não existe) ou delírios (falsas crenças, como sentir que alguém nos persegue ou nos quer fazer mal). Pode ainda traduzir-se em alterações comportamentais, num discurso confuso e incoerente, ou em alterações de humor.

Na fase aguda de um estado de psicose (ou seja, um estado de perda de contacto com a realidade), os doentes podem mostrar maior agitação psicomotora e existe um risco de comportamento agressivo.

"Mas a violência não é característica das pessoas com esta doença, a associação entre doença mental grave e violência não existe", explica Sara Vilas Boas. "As pessoas com psicose não são mais violentas do que o cidadão comum. Aliás, são mais vezes vítimas de crimes do que autoras", sublinha.

Os episódios psicóticos podem surgir associados a perturbações mentais como depressão, esquizofrenia ou bipolaridade.

Quais são as causas de um surto psicótico?

As origens podem ser várias, desde outras doenças mentais até ao consumo de substâncias psicoactivas. Também pode ser causado por problemas de saúde físicos, como um tumor cerebral ou um acidente vascular cerebral; ou por experiências traumáticas e mudanças drásticas na vida familiar e laboral. A psicose está ainda relacionada com factores biológicos e hereditários.

As pessoas refugiadas têm maior risco de doença mental?

Sim, a emigração e, em especial, o estatuto de refugiado, aumentam o risco de alguém sofrer de doença mental, seja psicose, seja depressão ou ansiedade, confirma Sara Vilas Boas.

Também a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece que a prevalência de doenças mentais como depressão, ansiedade e stress pós-traumático é maior entre migrantes e refugiados do que entre as populações que os acolhem. Além disso, psicoses são mais frequentes entre pessoas migrantes em vários países.

Um acompanhamento psicológico e psiquiátrico adequado pode evitar um surto psicótico?

Se alguém que já teve comportamentos violentos receber o tratamento adequado, a par da integração num processo de readaptação psicossocial, a probabilidade de novos actos de violência diminui, diz Sara Vilas Boas. "No caso de ser o primeiro episódio psicótico, é mais difícil de evitar", esclarece a psiquiatra, salientando que é importante perceber, em cada caso, se existia, ou não, um diagnóstico; se o tratamento estava, ou não, a ser cumprindo.

"Confirmando-se que se tratou de um surto psicótico, o atacante terá de receber apoio psicológico e psiquiátrico", adianta também Mariana Reis Barbosa, que admite que em Portugal se investe "pouco" na saúde mental. "Estamos a falar de pessoas que, muitas vezes, sofrem de stress pós-traumático, perturbações associadas às circunstâncias adversas que viveram, e a saúde mental tem de ser uma preocupação", defende, lamentando que, apesar do esforço das organizações que acolhem migrantes, o número de profissionais disponíveis para a população seja insuficiente.

O que devemos fazer perante um surto psicótico?

Se alguém desconhecido estiver numa situação de perigo iminente, "muitas vezes agindo contra si próprio e não contra outra pessoa", reforça Sara Vilas Boas, a primeira coisa a fazer é ligar aos serviços de emergência médica.

Caso se trate de alguém próximo que tenha falsas percepções ou falsas crenças, como acreditar que está a ser perseguido ou ouvir vozes, deve sugerir-se a marcação de uma consulta de psiquiatria para, se necessário, iniciar medicação.

Se falar em suicídio (pensamento mais comum nas psicoses do que o de homicídio, refere a psiquiatra), se destruir objectos e tiver um comportamento "mais agitado", o indicado é também chamar o 112, ou levar essa pessoa ao serviço de urgência de psiquiatria mais próximo.

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