Quem são os ismailitas que fizeram de Portugal a sua sede mundial?

Os primeiros ismailitas no país eram portugueses oriundos de Moçambique, que chegaram no início dos anos 1970.

Foto
O Centro Ismaili, em Lisboa, foi o local de um ataque que causou a morte a duas mulheres Miguel Manso

Em todo o mundo, constituem uma comunidade de cerca de 15 milhões de pessoas, em Portugal, serão entre oito e dez mil, mas foi aqui que o líder dos ismailitas, Karim Al Hussaini Aga Khan, decidiu instalar a sua sede mundial. Foi precisamente aqui, no Centro Ismaili instalado na Avenida Lusíada, em Lisboa, que na manhã desta terça-feira um ataque com faca provocou a morte de duas mulheres e ferimentos em outras duas pessoas. Para uma comunidade que advoga uma visão do Islão pacifista e voltada para o apoio ao desenvolvimento, um acto de violência como este, de razões ainda desconhecidas, constitui uma novidade absoluta.

Faranaz Keshavjee, membro da comunidade e mestre em Estudos Islâmicos, diz que todos estão absolutamente em choque perante um ataque sem precedentes aos ismailitas. “Nunca aconteceu um acto de violência como este em lado algum e temos vários centros espalhados pelo mundo”, disse a investigadora, que é também psicóloga social e membro do Observatório do Trauma.

Os primeiros ismailitas a instalarem-se em Portugal vieram de Moçambique, nos anos 1970, ainda antes da independência do país. Por isso, frisa Faranaz Keshavjee, “desde o início que a comunidade é portuguesa, porque os cidadãos de Moçambique nessa altura eram portugueses”. É a estes portugueses que se referem os números que situam entre oito e dez mil os ismailitas no país, mas nos últimos anos, com a chegada de imigrantes de países onde a comunidade está muito implementada — como a Ásia ou o Médio Oriente , os números podem ter crescido.

O centro da actividade ismailita no país é o local em que esta manhã ocorreu o ataque, e que foi oficialmente inaugurado em Julho de 1998. A escolha de Portugal para ser o centro do Imamat Ismaili (a estrutura administrativa mundial da comunidade) foi justificada pelo 49.º Aga Khan numa entrevista a Faranaz Keshavjee e a António Marujo, para o PÚBLICO, que a investigadora recorda agora de forma resumida: “Ele fala de Portugal ser o exemplo de uma sociedade pluralista, com 800 anos de presença islâmica e que tem na sua génese e genética uma apetência muito grande para ser uma comunidade de acolhimento.”

Os ismailitas são um grupo minoritário dos xiitas no Islão. “A comunidade segue um líder espiritual vivo, que é o príncipe Karim Al Hussaini. Todo o trabalho que tem feito na vigência do imamato dele, e que vem desde o seu avô, é muito voltado não só para as comunidades ismailitas do mundo, mas sobretudo para as sociedades em desenvolvimento, sobretudo as que se encontram em situação mais crítica”, explica a investigadora.

Para os ismailitas, Aga Khan é o imã do templo e cabe-lhe a ele interpretar o Corão, à luz da actualidade, mas a sua função vai além da religiosa. O Aga Khan tem também a responsabilidade de garantir o bem-estar e melhoria das condições de vida da sua comunidade e dos países em que ela está instalada. Um dos princípios fundamentais que rege o que Faranaz Keshvjee define como a “ética” inerente aos ismailitas é o de que cada um deve disponibilizar em benefício dos outros o que tem a mais, seja dinheiro, força de trabalho ou conhecimento. “O dinheiro só vale se der uma parte para ajudar o mundo. O mesmo com a força de trabalho. É a ética desta comunidade, que é muito virada para o serviço e para o voluntariado. Entende que servir é uma honra”, diz.

Rede presente em 30 países

Muito deste trabalho é visível através da Rede Aga Khan para o Desenvolvimento, presente em 30 países, com mais de 80 mil pessoas, incluindo o Afeganistão, onde permaneceram após o regresso dos taliban ao poder. “Onde ninguém quer pôr os pés, lá está a rede”, sintetiza a investigadora.

Regida por uma Constituição própria, aprovada em 1986, os ismailitas têm, em cada país, um conselho nacional, que em Portugal é escolhido de três em três anos, e que deve pôr em prática as indicações do líder.

Num trabalho do PÚBLICO de 2016, sobre a comunidade, esta era descrita como uma “elite bem integrada”, envolvida em diversos projectos (por cá, muito assentes na educação, mas não só), e que recorre aos muitos milhões gerados pelas várias empresas que lhe estão associadas para reinvestir no apoio ao desenvolvimento.

Com algumas indicações de que o autor do ataque será um refugiado afegão que pode ter algum problema mental, Faranz Keshvjee insiste que é preciso fazer mais por quem chega. “A saúde mental é uma questão crítica. Há pessoas doentes e que podem aparecer em qualquer lado. Temos gente a vir de guerras dramáticas e a entrar no país e temos de tratar estas pessoas.”

Sugerir correcção
Ler 1 comentários