A época de alergias está a ficar mais agressiva – e as alterações climáticas têm culpa

O aumento das temperaturas, combinado com níveis mais altos de ozono e CO2, está a “baralhar” o calendário polínico. O pólen está mais agressivo e presente no ar por mais tempo. O que pode ser feito?

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As alterações climáticas podem desempenhar um papel no desenvolvimento de alergias e doenças auto-imunes Gabriela Gómez

As alterações climáticas estão a “baralhar” o calendário polínico, fazendo com que a temporada de alergias se torne mais longa e difícil. O aumento das temperaturas, combinado com níveis mais altos de ozono e dióxido de carbono (CO2), pode não só prolongar a época de floração, mas também promover a dispersão geográfica de plantas que dependem do vento para disseminar o pólen, refere uma revisão publicada no dia 27 de Fevereiro na revista científica EMBO Reports.

O impacte da crise climática na saúde não se resume ao capítulo das alergias. “A exposição ao pólen desencadeia congestão nasal em pessoas com rinite alérgica, tendo sido identificado ainda que aumenta a susceptibilidade a infecções respiratórias como a covid-19, independentemente do estatuto alérgico”, afirma-se no artigo.

Outros eventos climáticos extremos – como secas, intempéries e tempestades de areia – também libertam na atmosfera grandes quantidades de partículas finas, que, por sua vez, também contribuem para um risco acrescido de doenças respiratórias e alergias.

“Em resumo, ao aumentar a exposição a novos poluentes, alérgenos e vectores de doenças, as alterações climáticas podem desempenhar um papel no desenvolvimento de alergias e doenças auto-imunes”, conclui o estudo elaborado por 11 investigadores das Universidades de Harvard e Stanford, ambas nos Estados Unidos.

O nosso artigo pode ajudar a definir políticas públicas sobre crise climática e saúde, fornecendo uma visão abrangente do estado actual do conhecimento sobre a intersecção entre clima, alergias e doenças auto-imunes. Ao sintetizar as descobertas de diversos estudos, esperamos apoiar os decisores políticos com uma melhor compreensão das relações complexas entre as alterações climáticas e os impactos a longo prazo na saúde humana”, acredita a primeira autora Alexandra Lee, numa resposta enviada por email.

Muito além do termómetro

Quando a mudança do clima começou a ser discutida globalmente, usava-se muito a expressão “aquecimento global” para nomear o problema. A terminologia acabou por ser substituída por expressões como “crise climática” precisamente para não resumir um processo tão complexo, com manifestações tão díspares que vão de ciclones a secas severas mais frequentes, apenas à subida da temperatura média no planeta.

Existe uma enorme interdependência entre os elementos que compõem os ecossistemas, valendo o mesmo para os processos naturais que os regem ou influenciam. E é por tudo estar correlacionado que a mudança do clima vai muito além do termómetro. Tudo funciona como num intricado relógio, em que alterações numa minúscula pecinha terão repercussões noutros elementos, afectando, por fim, o funcionamento global da estrutura.

No caso específico das alergias, o efeito em cascata pode ser resumido assim: à medida que as temperaturas aumentam, as plantas produzem mais pólen. Trata-se de um conjunto de pequeninos grãos “fabricados” pelo estame, que é o órgão sexual masculino das plantas que desenvolvem flores e frutos (as angiospermas). Havendo produção polínica durante um período mais extenso, a fase das alergias tende a tornar-se também mais longa e intensa.

“O aumento da temperatura vai condicionar uma alteração do calendário [polínico]. No calendário clássico da Primavera, que começou há pouco, as plantas começam a florescer. Depois vem o Verão, secam e desaparecem. Agora, as épocas polínicas começam mais cedo e a terminam mais tarde. Isto já está observado e documentado em diferentes publicações internacionais”, explica ao PÚBLICO o médico alergologista Pedro Carreiro Martins, que não participou na revisão do estudo da EMBO Reports.

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A prática de exercício ao ar livre nos dias de maior concentração polínica aumenta a exposição a este alérgeno Daniel Rocha

As mudanças não param por aí. Pedro Carreiro Martins explica que existe ainda o problema da multiplicação dos picos polínicos. Agora, temos mais dias com concentrações elevadas de pólenes do que tínhamos no passado. Em resumo, este é cenário actual: temos pólen no ar durante mais tempo, com picos polínicos mais elevados e os próprios grãos libertados pelas plantas podem estar mais agressivos.

“Os pólenes estão a ficar também mais imunogénicos, ou seja, mais agressivos. Isto decorre não só da forma como se desenvolvem (mais CO2 e mais água), mas também da interacção [das proteínas polínicas] com os poluentes atmosféricos nas zonas urbanas”, explica numa videochamada Pedro Carreiro Martins, que é professor associado na Nova Medical School e secretário-geral da Sociedade Portuguesa de Alergologia e Imunologia Clínica.

Entre os pólenes “incómodos” mais comuns na Primavera estão o das gramíneas, parietárias, oliveiras e também o da artemísia (que poliniza de Abril a Setembro). Contudo, há uma grande possibilidade de que mais plantas entrem nessa lista. Padrões de chuva alterados facilitam a germinação de certas plantas, podendo favorecer a dispersão geográfica de espécies. A chegada de espécies invasoras pode dar origem a um novo padrão de alergia.

“Há espécies que são mais alergizantes, que nós não tínhamos no nosso país, e que começam a colonizar os nossos terrenos. Nós, neste momento, ainda não temos muito a Ambrosia, mas em Espanha já se começa a ter. O pólen da Ambrosia é um dos mais alergizantes, sendo muito comum nos Estados Unidos e em certas zonas da Europa. Portugal ainda não tem, ou tem muito pontualmente; Espanha também não tinha. É uma questão de tempo, vai chegar cá”, alerta Pedro Carreiro Martins, que também integra o comité científico do Conselho Português para a Saúde e Ambiente.

Precisamos de uma app polínica?

Diferentes relatórios internacionais documentam um aumento global, e progressivo, das doenças alérgicas ao longo das últimas cinco décadas. Os dados clínicos actuais também sugerem um aumento tanto da incidência, como da prevalência de doenças respiratórias, incluindo renite alérgica ou asma.

É perante este cenário que investigadores defendem a criação de uma aplicação nos telemóveis capaz enviar alertas, em tempo real e de forma personalizada, às pessoas alérgicas que subscrevam estes serviços.

“Nós sugerimos que um serviço de informação polínico novo, personalizado e em tempo real, como os serviços de alerta enviados por apps de dispositivos móveis, deve ser desenvolvido para permitir uma boa gestão das alergias”, refere um capítulo do livro Biodiversity and Health in the Face of Climate (2019), do qual o cientista Athanasios Damialis é co-autor.

Contactado pelo PÚBLICO, Athanasios Damialis explica que já está a ser discutida a possibilidade de um sistema europeu capaz de integrar informação de diversas aplicações existentes e, assim, fornecer um serviço polínico mais sofisticado. “Mas ainda é um plano”, refere o professor de Ecologia Terrestre e Alterações Climáticas da Faculdade de Biologia da Universidade de Tessalónica, na Grécia.

“Existem várias apps. Mas a grande questão é: quantos utilizadores realmente a utilizam? Não são apps personalizadas. Fazem uma previsão polínica com alguns dias de antecedência, mas não me dizem se eu tenho, pessoalmente, um risco elevado de ter sintomas. Na maior parte das vezes, dão apenas informação sobre o pólen em si, explica Athanasios Damialis numa videochamada com o PÚBLICO.

O serviço europeu de monitorização da atmosfera do programa Copérnico acompanha e prevê a qualidade do ar e a presença de seis tipos de pólen em toda a Europa. Os dados disponibilizados ajudam na gestão e no tratamento dos sintomas alérgicos, mas não permitem tomar decisões quotidianas, como, por exemplo, saber qual é o melhor horário para passear ao ar livre ou qual o jardim mais próximo que tem menor carga polínica.