Bibliotecas inglesas escondem livros de Enid Blyton por causa de “linguagem ofensiva”
Palavras como “queer” e “gay” foram substituídas nas edições revistas, bem como as expressões “cala a boca” e “castanho”. Isabel Alçada apelida esta decisão de “absurda”.
Edições originais de obras de Enid Blyton (1897-1968), autora de livros para crianças e adolescentes como Noddy e a série Os Cinco, foram retiradas das prateleiras das bibliotecas públicas de Devon, em Inglaterra, e armazenadas em locais não acessíveis ao público, de forma a que este “não tropece” em linguagem “desactualizada” e “ofensiva”, noticiou o jornal inglês The Telegraph.
Disponíveis ficam apenas as versões recentemente alteradas, em que palavras e expressões “potencialmente ofensivas” foram removidas. No entanto, os livros originais continuam listados no catálogo online. Os leitores que quiserem ter acesso a estes títulos terão de os solicitar especificamente aos bibliotecários, e serão advertidos sobre o respectivo conteúdo com um aviso de “gatilho verbal”.
A Libraries Unlimited, empresa que gere as bibliotecas no condado de Devon, tem uma política de renovação regular do seu stock com versões alteradas de livros clássicos. “Nos livros que tenham linguagem que seja cada vez mais datada”, afirmou a Libraries Unlimited, dando o exemplo as obras de Enid Blyton, “as bibliotecas continuarão a adquirir novas edições onde as editoras tenham actualizado a linguagem”, com o objectivo de tornar estas obras “atemporais”.
No caso dos livros da escritora inglesa, palavras como “queer” e “gay” foram substituídas, bem como as expressões “cala a boca” e “castanho”, esta última numa referência à cor da pele de um pescador.
"Se as bibliotecas públicas insistirem em ter uma política de censura, os utilizadores, especialmente crianças e os seus pais ou responsáveis, devem ser claramente informados de que o acervo da biblioteca pode não ser abrangente devido a essa política", contrapôs Byrn Harris, consultor jurídico da Free Speech Union, assinalando ainda que este tipo de decisões são uma barreira a um serviço público “completo” e “eficiente”.
Importa, no entanto, lembrar que não é a primeira vez que os livros de Enid Blyton são alvo de críticas. Em 1966, um artigo do jornal The Guardian assinalava o racismo de A Boneca Negra (1966), em que a personagem principal Sambo só é aceite pelo dono quando o seu “rosto preto feio é lavado pela chuva". Uns anos antes, em 1960, a editora Macmillan recusou-se a publicar o livro O Mistério que Nunca Existiu (1961), por causa do “toque leve, mas pouco agradável, de xenofobia antiquada”. Ainda assim, a história viria a ser lançada pela William Collins. Em anos mais recentes, Noddy também não passou impune, devido à “vilanização” das personagens negras.
Decisão “absurda” e “preocupante”?
Esta tomada de posição da rede de bibliotecas de Devon acontece numa altura em que se adensam os debates e as polémicas em torno das revisões de obras literárias, realizadas com o objectivo de tornar a linguagem menos datada e mais inclusiva.
A escritora de literatura infanto-juvenil Isabel Alçada apelida esta decisão de “absurda”. “Eu ainda sou do tempo em que tivemos censura em Portugal e considero estas coisas muito problemáticas”, afirma a co-autora da colecção Uma Aventura, para quem é preciso levar em conta “a época e o contexto” em que as obras foram produzidas.
“Está-se a cair num exagero, num fundamentalismo tal, que se acaba por criar novos preconceitos - o preconceito de pessoas que se julgam bem pensantes, na linha do politicamente correcto”. Para Isabel Alçada, a linguagem e as cenas violentas do audiovisual e da indústria dos videojogos são “muito mais graves”, afectando “a forma como as crianças interagem com o mundo”. “São coisas que as crianças ouvem, registam e repetem.”
A escritora não concorda com a aposta em versões alteradas – “desvirtua as obras” –, mas é a favor de discussões sobre a linguagem utilizada, comparando com o contexto actual. “Devemos, claro, analisar e debater as obras com as crianças. Devemos falar com as crianças sobre todos os assuntos, de forma cuidadosa mas sem desviar a verdade. Dar a oportunidade de optar em liberdade, também aos mais novos.”
Já Pedro Sobral, presidente da Associação Portuguesa de Editores e administrador de Edições Gerais da LeYa, que edita os livros de Enid Blyton em Portugal, considera a iniciativa das bibliotecas de Devon “bastante preocupante”.
“É fundamental garantir a liberdade de quem escreve, de quem edita e de quem lê. As obras de Enid Blyton foram, e são, lidas por milhões de pessoas em todo o mundo, e em Portugal também. Se uns poucos leitores ou bibliotecários encontram algo nestes livros que os ofende ou que os perturba, têm sempre a possibilidade de não os ler ou de não os aconselhar, até. Mas não podem limitar quem encontra nestas obras um imaginário extraordinário e que, lendo, crescem e criam em si o espírito livre de quem pode formar a sua própria opinião”, aprofunda Pedro Sobral. “Qualquer limitação da linguagem é, em si, uma limitação grave ao pensamento e à formação de uma visão crítica da sociedade”
A LeYa não pretende, portanto, levar a cabo qualquer tipo de revisão das obras de Blyton. "Quando qualquer editor da LeYa propõe um livro para publicação, o que é relevante é a qualidade de escrita que esse editor encontrou. E essa qualidade obriga a manter o que o autor se propôs a apresentar para edição. Este aspecto é ainda mais importante num caso como este, em que estamos perante uma autora que deixou os livros com textos fixados, que já não é viva e, como tal, obriga o seu editor em Portugal a respeitar aquele ou aqueles textos que escreveu em vida.”