A maioria dos australianos vê com bons olhos o facto de o canguru (considerado o animal nacional) ser usado tanto na alimentação como no fabrico de acessórios. As prateleiras dos supermercados estão repletas de carne de canguru, e o kangatarianism – um regime alimentar que exclui todas as carnes excepto a de cangurus, devido ao baixo teor de gordura e à criação não industrial destes mamíferos – tornou-se uma dieta alternativa.
Os retalhistas especializados expõem uma variedade de cintos, carteiras e bolsas de couro de canguru, enquanto, nas lojas de lembranças, as bolsinhas feitas a partir do escroto do animal constituem uma opção de presente para quem já tem de tudo.
Assim, a decisão de gigantes desportivos como a Nike e a Puma de suspender o uso de couro de canguru em sapatilhas fez levantar sobrancelhas na Austrália. O anúncio foi feito após legisladores estaduais e federais nos Estados Unidos (EUA) envidarem esforços para proibir a venda de produtos de canguru.
A Nike eliminará gradualmente o material conhecido como “couro k” até 2023, informou a empresa esta semana. As chuteiras passarão a ser fabricadas com um material sintético. Este anúncio seguiu-se ao da Puma, feito há duas semanas, de que substituiria o couro de canguru por um material parcialmente reciclado chamado k-better.
Tanto a Nike como a Puma não esclareceram se estavam a prescindir do couro de canguru devido a preocupações com o bem-estar animal. Contudo, estas empresas, juntamente com a Adidas, foram alvo de uma campanha intitulada Cangurus não são calçado, promovida pelo Centro para uma Economia Humana (CHE, na sigla em inglês), com sede nos EUA.
Questionado se a Adidas também tem planos para eliminar o couro de canguru, o porta-voz Stefan Pursche afirmou que este material “desempenha um papel menor e está significativamente abaixo de 1%” [de utilização], uma vez que a empresa tem conseguido “substituir o couro de canguru por outros materiais inovadores em muitos produtos”.
Um projecto-lei federal para proibir a venda de produtos de canguru nos EUA foi apresentado, em 2021, pelo deputado democrata Salud Carbajal (eleito pela Califórnia) e pelo republicano Brian Fitzpatrick (Pensilvânia). Diplomas semelhantes foram apresentados no Oregon – onde a Nike está sediada –, Arizona, em Connecticut, Vermont e Nova Jersey, afirmou o CHE este mês. Mas a Califórnia é o único estado que proibiu a venda do material.
Wayne Pacelle, presidente do CHE, referiu num comunicado que o anúncio foi “um acontecimento sísmico na protecção da vida selvagem”, que “traria alívio para estes marsupiais icónicos”. (Pacelle renunciou ao cargo de director executivo da organização em 2018, na sequência de acusações de assédio sexual divulgadas pelo The Washington Post; o responsável negou as alegações.)
Mas a visão que os australianos têm dos cangurus é bem diferente.
Morrer à bala ou à fome?
Os cangurus são abatidos na natureza, não são criados em cativeiro. O governo australiano estimou em 2021 que havia mais de 30 milhões de marsupiais saltitantes – mais do que a população humana da Austrália, de cerca de 26 milhões. A indústria comercial, que pode matar cerca de 15% das espécies mais abundantes anualmente, não teve impacto no número total de cangurus na natureza, afirmaram em 2015 investigadores da Universidade de New South Wales, em Kensington, na Austrália.
Os cangurus são mais numerosos agora do que antes da colonização britânica, nota também Gordon Grigg, professor emérito de zoologia da Universidade de Queensland, em Brisbane, na Austrália. Desde 1788, criadores de ovelhas e gado transformaram faixas do continente exactamente no tipo de habitat preferido do canguru, limpando a terra e construindo represas. Ao mesmo tempo, estes criadores reduziram drasticamente os dingos (Canis lupus dingo), cães selvagens que constituem o principal predador do canguru.
Os cangurus são frequentemente vistos em campos de golfe ao entardecer, fora das cidades australianas, e, ocasionalmente, até tentam jogar um pouco de futebol: em 2018, um destes animais entrou em campo durante um jogo da Primeira Liga e chegou mesmo a deitar-se à frente da zona do guarda-redes.
Em anos de escassez, contudo, milhões de cangurus morrem à fome, diz Grigg. Estas populações prosperam na chuva e entram em declínio durante períodos severos de seca hidrológica. O académico é a favor do abate e de uma indústria comercial – uma visão dominante entre os ecologistas, refere.
“Este é o país das secas periódicas, que muitas vezes podem ser muito longas, e isso foi antes de começarmos a falar em alterações climáticas”, diz Grigg. “Um animal baleado sem saber do perigo é muito melhor do que um animal que passa dias, semanas, a morrer."
Euan Ritchie, professor de ecologia e conservação da vida selvagem na Universidade Deakin, afirma que ficaria preocupado se os cangurus não fossem mais capturados.
“É horrível quando o número de cangurus fica muito alto, eles pastam demais”, diz Ritchie. “Acabamos por ver imagens horríveis de cangurus a morrer à fome em paisagens que estão praticamente desprovidas de vegetação.” Os cangurus também retiram fontes de alimento a outras espécies nativas, às vezes ameaçadas de extinção, quando as populações de marsupiais crescem muito.
“A indústria comercial é cruel”
As organizações dedicadas aos direitos dos animais dizem, contudo, que a indústria comercial é cruel. Membros da campanha Cangurus não são calçado, lançada em Janeiro de 2020, compraram outdoors no estado onde nasceu a Nike, Oregon, reuniram-se com legisladores dos EUA, organizaram uma petição e protestaram à porta das lojas da Nike.
Ambientalistas sublinham que as crias são retiradas das bolsas marsupiais quando as mães são baleadas e, depois, alvejadas na cabeça. Esta é, de resto, a prática recomendada pelo próprio governo australiano, uma vez que é vista como a mais humana. Centenas de milhares de crias morrem durante os períodos de caça comercial todos os anos, seja por ferimentos intencionais na cabeça ou fome após a morte das mães, revela um relatório de 2009 encomendado pela Animal Liberation NSW.
A directora executiva da Animal Liberation NSW, Lynda Stoner, afirma que a decisão da Nike e da Puma pode abrir um precedente para outras grandes empresas também se afastarem do couro de canguru. Defensores dos direitos dos animais e outras organizações contestam os dados oficiais e da indústria sobre o número de cangurus no país, alegando que a metodologia usada é errada e exagerada.
“Estes animais são lindos, sociáveis, voltados para a família e icónicos – precisamos protegê-los”, diz Lynda Stoner.
O exemplo do coala
O couro de canguru é usado há muito tempo em roupas desportivas, em particular para chuteiras. Também tem sido alvo de campanhas de bem-estar animal. Há quase 20 anos, depois de ver um vídeo de crias sendo abatidas, o astro do futebol britânico David Beckham parou de usar chuteiras Adidas que recorriam ao couro de canguru como material.
Só nos últimos anos, contudo, as grandes empresas decidiram parar de usar o material. No mundo da moda, Prada, Versace, Chanel e H&M estão entre as marcas que abriram mão do couro de canguru, segundo a PETA.
John Read, ecologista da Universidade de Adelaide, na Austrália, confessa que é “frustrante” que legisladores e empresas nos Estados Unidos e na Europa tomem decisões que afectam o ambiente australiano à luz da opinião de especialistas nacionais.
O investigador foi co-autor de uma declaração a pedir a gestão da população de cangurus através da abordagem comercial, juntamente com oito cientistas da vida selvagem e 25 organizações dedicadas à conservação, agricultura ou cultura aborígene em 2022.
Lynda Stoner, da Animal Liberation NSW, apontou contudo que foi um presidente dos EUA que ajudou a salvar outro animal australiano icónico – o coala. Herbert Hoover, então secretário de Comércio, tomou a decisão de proibir a importação de peles de coala há quase um século.
“Talvez os EUA precisem de salvar nossos cangurus também”, remata Lynda Stoner.