Ainda não se avistou nenhum indivíduo, mas encontraram-se provas da actividade de castores nas margens do rio Tormes, em Espanha, cerca de oito quilómetros antes de o curso de água desaguar no Douro, que ali serve de fronteira. Ou seja, pertíssimo de Portugal, mais especificamente da aldeia de Bemposta, no distrito de Bragança. A espécie Castor fiber, o castor-europeu, terá desaparecido do país no século XV. Por isso, a possibilidade de haver uma população desta espécie à beira da fronteira abre portas para o retorno dos castores num futuro próximo.
“Os primeiros vestígios de castores que se encontraram foram durante o Verão de 2022”, conta ao PÚBLICO Teresa Calderón, por e-mail. A bióloga, doutorada na área da biodiversidade, é a primeira autora de um artigo recente publicado na revista científica Histryx: the Italian Journal of Mammalogy, onde se descreve pela primeira vez a descoberta destes vestígios, noticiada há poucos dias pela Wilder, um site noticioso sobre natureza e ambiente. Entre os outros co-autores do artigo está Alfonso Balmori de la Puente, biólogo e investigador no Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos e da Rede de Investigação em Biodiversidade e Biologia Evolutiva (Cibio-Inbio).
“Fui eu que mostrei pela primeira vez os vestígios, depois voltei a visitar o local com vários dos co-autores do artigo para fazer uma prospecção à zona e procurar por mais”, acrescenta Teresa Calderón, que neste momento não está associada a nenhuma instituição. O Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) confirmou ao PÚBLICO que “tem conhecimento da publicação que refere a presença do castor próximo da fronteira”.
Uma das fotografias do documento mostra um salgueiro (Salix atrocinerea) derrubado com as marcas típicas dos dentes dos castores, que transformam os troncos de árvores em superfícies aguçadas como a ponta de um lápis. Uma segunda fotografia revela outra árvore com a casca roída e algumas marcas dos dentes de castor.
Os investigadores encontraram ainda “vegetação ripícola forrageada em regiões cercadas por água”, lê-se no artigo. Mas o animal ou os animais responsáveis pelos vestígios mantêm-se esquivos.
“Não cheguei a ver nenhum indivíduo”, afirma Teresa Calderón. “Mas, a julgar pela quantidade de árvores roídas e a quantidade de casca que lhes faltava, diria que há muito poucos, poderá inclusive haver apenas um indivíduo isolado naquela zona.” Nesse caso, a possibilidade de se estabelecer uma população ali fica muito reduzida.
"Engenheiros de ecossistemas"
Os castores são animais herbívoros que podem medir 80 centímetros de comprimento e pesar 30 quilos. Depois da capivara, são os maiores mamíferos roedores do mundo. Vivem em ambientes fluviais e têm o corpo adaptado à vida aquática. Além da espécie europeia, que se estende até à Ásia, existe o castor-americano (Castor canadensis), original da América do Norte (mas que foi introduzido na Patagónia, no Sul da América do Sul, e na Finlândia na primeira metade do século XX).
Uma das características mais importantes destes animais é a capacidade de construírem barragens nos cursos de água a partir de troncos, galhos e lama. “Os ecologistas referem-se frequentemente aos castores como ‘engenheiros de ecossistemas’ por causa da sua capacidade de alterar as paisagens onde vivem”, lê-se na entrada da enciclopédia Britannica sobre estes roedores.
As barragens, construídas a jusante da toca dos castores, servem tanto para impedir predadores de viajarem rio adentro como para criar um ambiente fluvial de águas mais profundas, onde os castores podem nadar à vontade.
Ao mesmo tempo, há efeitos benéficos mais alargados associados a estas pequenas barragens. “Os impactos ecológicos são extraordinários”, explica ao PÚBLICO Francisco Álvares, biólogo especialista em mamíferos, que não esteve ligado à descoberta dos vestígios de castores.
“Há um aumento da biodiversidade dos rios, uma diminuição dos poluentes, a qualidade da água aumenta e o risco de cheias diminui”, resume o investigador, que também pertence ao Cibio-Inbio. Um artigo publicado em 2020 mostrava também que cursos de rio habitados por castores nos Estados Unidos não eram afectados pelos incêndios, tornando-se um refúgio para outras espécies de animais.
Por tudo isto, os castores podem ser “muito importantes para a resiliência às alterações climáticas”, acrescenta Francisco Álvares.
Extinção e recuperação
No entanto, estes animais chegaram a estar perto da extinção. A caça por causa da carne, da pele, que era considerada um luxo, e também do castóreo – um composto que estes roedores segregam, que era usado como antiespasmódico e afrodisíaco – e a degradação dos habitats foram exercendo cada vez mais pressão no roedor. No final do século XIX, existiam apenas pequenas bolsas do mamífero em alguns países da Europa.
Em Portugal, “é de crer que a pressão da caça e a desflorestação, intensas no século XV, tenham representado o dobre de finados para espécies frágeis como o castor”, explica o paleontólogo Miguel Telles Antunes, num artigo de 1989 com o título Castor fiber na gruta do Caldeirão. Existência, distribuição e extinção do castor em Portugal, que relata os vestígios fósseis do castor em grutas portuguesas, as marcas que o mamífero deixou na toponímia do país e as últimas referências deste animal em documentos portugueses.
Mas ao longo do século XX o Castor fiber foi recuperando o território perdido na Europa, quer através da expansão natural, quer através da introdução oficial e não oficial de animais em territórios onde eles tinham sido extintos. A estimativa actual é de que existam 1,5 milhões de castores-europeus. Neste momento, a espécie não está ameaçada de extinção.
Em 2003, o animal voltou a habitar a Península Ibérica após uma libertação ilegal de 18 indivíduos da espécie Castor fiber vindos de outros países da Europa. Os animais foram libertados no rio Aragão, um afluente do Ebro, no Norte de Espanha.
Na altura, o Governo espanhol considerou os castores uma espécie invasora introduzida ilegalmente e tentou acabar com aquela população, depois de ter tido uma aprovação especial da Comissão Europeia, relata o artigo de Teresa Calderón. Mas não teve sucesso. “Em 2018, a Comissão Europeia considerou o castor uma espécie historicamente nativa. Como consequência, o Ministério do Ambiente de Espanha declarou o castor como sendo uma espécie protegida”, lê-se naquele artigo.
Entretanto, a população inicial espanhola multiplicou-se, espalhou-se pela bacia hidrográfica do Ebro e já saltou para as bacias do Tejo e do Douro, colonizando alguns lugares. No entanto, a distância entre a população que se conhece no rio Douro e os vestígios descobertos no Verão passado no rio Tormes são superiores a 300 quilómetros. Por isso, os investigadores querem descobrir como os castores apareceram no rio Tormes.
Introdução ilegal
“Não podemos excluir a hipótese de uma colonização natural”, avança Teresa Calderón. “No entanto, também sugerimos que a introdução por parte do ser humano é outra hipótese, já que a população que está mais perto daquela região se encontra a várias centenas de quilómetros, na cabeceira do rio Douro.”
Segundo a investigadora, os castores não costumam percorrer tantos quilómetros de uma só vez e não foram detectados vestígios da actividade destes roedores entre o Tormes e as populações já conhecidas, que habitam a cabeceira do rio Douro. Por isso, a hipótese de ter sido feita uma nova introdução de indivíduos é a mais consistente.
“Tem havido mais episódios da introdução de indivíduos sem autorização, tanto em Espanha como noutros países europeus”, contextualiza a bióloga. “Há colectivos que tentam reconstruir os ecossistemas naturais. Apesar de haver uma boa intenção de se fomentar a biodiversidade, estas acções devem ser sempre acompanhadas de estudos prévios e do conhecimento da administração que gere o território.”
Francisco Álvares considera a introdução ilegal uma “iniciativa condenável”, já que não se cumprem as boas práticas de introdução de espécies preconizadas pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, sigla em inglês). Essas práticas passam pela sensibilização da população local, com o objectivo de evitar conflitos futuros, pela garantia de que os animais introduzidos estão saudáveis e apresentam uma boa variabilidade genética, evitando a consanguinidade, e por assegurar que o novo habitat escolhido é realmente adequado à espécie.
“No caso do rio Tormes, que apresenta um vale encaixado com galeria ripícola pouco extensa, a presença dos castores poderá levar a um impacte significativo no bosque ribeirinho”, argumenta Francisco Álvares. “Além disso, encontram-se numa área confinada e limitada por ‘barreiras’, entre o canhão do rio Douro e a barragem do rio Tormes, o que no seu conjunto poderá condicionar a viabilidade dos indivíduos libertados.”
Mas Teresa Calderón considera a região “excepcional pela protecção que proporciona” ao castor e às outras espécies que vivem ali. Além de as margens do rio Tormes serem de difícil acesso, a bióloga recorda que a região faz parte do Parque Natural das Arribas do Douro, que é também uma Zona de Protecção Especial, ao abrigo da Directiva Aves, e Zona Especial de Conservação, ao abrigo da Directiva Habitats, no contexto da Rede Natura, uma rede ecológica criada pela União Europeia para o espaço comunitário.
A caminho de Portugal?
Resta saber o que vai acontecer aos castores na região. “Seria importante saber quantos indivíduos existem ali. Se é um indivíduo solitário ou se é uma família. De onde são provenientes. Se houver juvenis, saber se se dispersaram. Para que parte do rio. Quais são os seus hábitos na nova área, tão distante das zonas que já ocupam em Espanha”, enumera a bióloga.
E quando é que poderiam chegar a Portugal? “No caso de se formar uma população reprodutora, os juvenis poderiam chegar facilmente ao rio Douro e ampliarem a sua distribuição pelos afluentes [do Douro] em Portugal”, responde-nos a investigadora, adiantando que, se os castores tiverem chegado naturalmente ao Tormes, “poderia haver já algum indivíduo em território português”.
Mas por cá ainda não há notícias deste roedor. “Nunca foram avistados castores, nem encontrados vestígios da espécie na região Norte de Portugal”, assegura o ICNF em resposta a uma série de questões colocadas pelo PÚBLICO. Segundo o instituto, o programa de monitorização de mamíferos que existem por todo o país e que inclui o Parque Natural do Douro Internacional torna “possível detectar a expansão da espécie para território nacional, caso esta venha a ocorrer”.
No entanto, o ICNF diz não conseguir fazer uma estimativa de quando a espécie irá recolonizar Portugal ou se isso vai realmente acontecer.
“Não há ainda informação sobre a densidade, origem e viabilidade do núcleo cujos vestígios foram agora encontrados, e destas características depende a probabilidade de expansão”, adianta o ICNF. “Caso se venha a verificar a expansão para território nacional, será monitorizada a sua área de ocorrência, dispersão e densidade populacional, será investigada a sua origem e características populacionais e, com base nestas informações, será elaborado um plano de acção para a espécie.”
Para Francisco Álvares, a possível vinda de castores para Portugal seria uma notícia positiva para a biodiversidade. “É mais uma espécie, é mais um elemento”, diz o biólogo. “Mas tem de ter condições para existir.”
Uma das primeiras coisas que será necessário confirmar é se os indivíduos do rio Tormes pertencem à espécie europeia ou se, numa hipótese mais remota, alguém introduziu castores norte-americanos, lembra o biólogo português. Nesse caso, estaríamos perante uma espécie exótica e os procedimentos teriam de ser outros, avisa o ICNF, com a captura e a esterilização de “todos os exemplares”.
“Realizar estudos genéticos proporcionaria mais pistas sobre a origem desta população”, diz, por sua vez, Teresa Calderón, explicando que a dificuldade de aceder às margens do Tormes dificulta para já a monitorização da população. “Pouco a pouco, vamos avançando no conhecimento desta população fronteiriça.”
Francisco Álvares está em contacto com os investigadores espanhóis e explica que o Cibio-Inbio está disponível para realizar “as análises genéticas” aos castores. A bióloga espanhola confirma: “Estamos em contacto. Ao ser uma localização fronteiriça, a melhor abordagem é, sem dúvida, a colaboração entre ambos os países.”