Rita Lee (1947-2023), a eterna rainha do rock brasileiro
A cantora e compositora brasileira Rita Lee ficará para sempre como a eterna rainha do rock brasileiro, apesar de ter seguido muitos outros géneros musicais.
A cantora e compositora brasileira Rita Lee morreu na noite desta segunda-feira em São Paulo, sua cidade natal, vítima de cancro. Tinha 75 anos e ficará para sempre como a eterna rainha do rock brasileiro, apesar de ter seguido muitos outros géneros musicais.
O velório será aberto ao público, no Planetário do Parque Ibirapuera, na quarta-feira, 10 de Maio, entre as 10h e as 17h. “De acordo com a vontade de Rita, seu corpo será cremado”, e essa já será uma cerimónia particular, lê-se numa breve nota publicada no Instagram da cantora.
Rita Lee foi internada na madrugada de 24 de Fevereiro no Hospital Albert Einstein, na capital paulista, “por prevenção”, devido a um agravamento do seu estado de saúde. Tinha-lhe sido diagnosticado, na sequência de exames de rotina, um cancro no pulmão, em 2021, a que se seguiu um tratamento com radioterapia e imunoterapia. Passado menos de um ano, em Abril de 2022, a família anunciou que o cancro estava em remissão, não escondendo a doença nem as suas consequências.
No início de Fevereiro, o seu marido (e também músico) Roberto de Carvalho partilhou uma fotografia da cantora com o cabelo curto, consequência dos tratamentos. E a própria Rita Lee, com um humor que nunca a abandonou, publicou uma imagem das suas mãos, de unhas coloridas, escrevendo num post que estava “em clima de folia”, referindo-se ao Carnaval.
Baby boomer paulistana
Nascida Rita Lee Jones de Carvalho em 31 de Dezembro de 1947, filha mais nova de um casal paulista, Charles Fenley Jones (1904-1983, ex-militar, dentista, descendente de imigrantes norte-americanos confederados, vindo o “Lee”, atribuído às filhas, do general sulista Robert E. Lee) e Romilda Padula (1904-1986, filha de imigrantes italianos de Molise, no Sul de Itália), Rita teve a infância povoada de música desde muito cedo, por via da rádio, como ela recordou logo a abrir o livro Rita Lee, Uma Autobiografia (Ed. portuguesa Contraponto, 2017), auto-retrato desassombrado de uma vida extraordinária, contada em flashes, como num diário, mas onde cada flash é uma história em si, tão forte e impressiva quanto a própria escrita da autora:
“Meu direito de nascer como baby boomer paulistana foi regado a Carmen Miranda, Emilinha Borba, Nelson Gonçalves, Doris Day, Fred Astaire e Mario Lanza. Dizem que eu era feliz e sabia, uma infanta normal que passava o dia na minha bem-aventurada insignificância, dentro de uma sagrada família onde eu, por tabela, viajava na modernidade das cinco mulheres geniais que me cercavam.” A mãe, a madrinha e três irmãs, uma adoptada e duas de sangue.
Daí até à música fazer parte da sua vida futura, foi um “pulo”. No colégio, formou um quarteto vocal “só de meninas”, as Teenage Singers, que começou a participar em festivais escolares e mais tarde evoluiu para sexteto, três raparigas e três rapazes, denominado O’Seis – que o tempo reduziu a três: Rita Lee e os irmãos Arnaldo (com quem Rita começara a namorar) e Sérgio Baptista. Ou seja: o mesmo exacto trio que viria a constituir os Mutantes, em 1966.
Foi, aliás, com os Mutantes que Rita surgiu na capa do disco colectivo Tropicália, Panis et Circenses, juntamente com Caetano Veloso (que segura uma fotografia de Nara Leão), Gilberto Gil (exibindo uma foto de Capinam), Tom Zé, Rogério Duprat (com um penico na mão, como se fosse uma chávena de chá), Gal Costa e Torquato Neto. Isso em 1968. Mas foi com os cinco álbuns que gravaram entre 1968 e 1972, marcantes na história da música no Brasil e mesmo além-fronteiras, que os Mutantes se tornaram o “primeiro [grupo] de rock brasileiro no sentido exato da expressão”, conforme os classificou Arthur Dapieve no livro BRock, o Rock Brasileiro dos Anos 80 (Editora 34, São Paulo, 1995). A história pormenorizada do grupo, contou-a Carlos Calado num outro livro, A Divina Comédia dos Mutantes (Editora 34, 1995).
Viragens e regressos
Só que Rita Lee não tardaria a começar uma carreira a solo. Separada de Arnaldo (de quem viria a divorciar-se em 1977), o disco Hoje É o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida, de 1972, marcou uma nova fase da sua carreira, que incluiu a formação de outros grupos, como o fugaz duo com Lúcia Turnbull, intitulado As Cilibrinas do Éden, ou a banda Tutti Frutti, cujo álbum Fruto Proibido (editado em 1975, segundo álbum desta banda e quarto de Rita) trazia canções que fariam história, como Ovelha negra, Agora só falta você ou Esse tal de roque enrow.
Ter conhecido Roberto de Carvalho, que viria a ser seu parceiro e marido até ao final, foi outro ponto de viragem. Encontraram-se em 1976, não tardando a nascer o primeiro filho de ambos, Beto Lee (1977), ao qual se seguiriam mais dois: João (1979) e Antônio (1981). Depois de três álbuns homónimos que lhe valeram êxitos seguros, editados em 1979 (Rita Lee, com canções como Chega mais, Doce vampiro ou Mania de você), em 1980 (Lança perfume, Baila comigo, Nem Luxo, Nem Lixo) e 1981, este intitulado Saúde (que inclui, entre outras, Saúde e Banho de espuma), Rita começa a assinar com Roberto (que já era seu produtor) discos em dupla, como Rita Lee e Roberto de Carvalho (1982), Bombom (1983), Rita e Roberto (1985) ou Flerte Fatal (1987), com canções como Flagra, Desculpe o Auê, Vírus do amor ou Nave Maria.
Sem que Roberto deixasse de ser produtor, viriam depois álbuns assinados só por ela, a começar por Santa Rita de Sampa (1997), que na verdade assinalou um regresso à ribalta após um grave acidente doméstico, uma queda de uma varanda que lhe provocou uma fractura do maxilar e uma perda parcial de audição no ouvido direito. A esse álbum seguiram-se 3001, que Rita veio apresentar ao vivo em Portugal no ano do seu lançamento, 2000 (com “um rock’n’roll batido, enérgico, misturado com programações electrónicas”, como na altura se escreveu no PÚBLICO), Aqui, Ali, em Qualquer Lugar (2001, só com versões de canções dos Beatles, uma das grandes paixões musicais da cantora), Balacobaco (2003) e Reza (2012).
Após o lançamento de Reza, Rita anunciou, em público, a sua retirada dos palcos, mas não da música. Palcos esse que lhe valeram vários discos ao vivo, o primeiro dos quais Refestança (com Gilberto Gil), seguindo-se-lhe Rita Lee em Bossa’n’Roll (1991), A Marca da Zorra (1995) Acústico MTV (1998), MTV ao Vivo (2004) e Multishow ao Vivo (2009).
Na música, Rita Lee ganhou mais de dez prémios Sharp, três APCA e um Shell, entre várias outras distinções. E foi celebrada em discos de tributo, como o colectivo Eles Cantam Rita Lee (1996), Love, Lee Rita, de Ná Ozetti (1996, disco cujo título é um trocadilho feliz com a célebre canção dos Beatles, Lovely Rita) ou Baby, Baby, de Lulu Santos (2017), entre outros.
Humor e amor
A par do seu percurso como cantora e autora de canções, Rita Lee escreveu livros infantis e duas obras autobiográficas, a já citada Rita Lee: Uma Autobiografia (2016) e FavoRita (2018). Também participou, como actriz, em filmes, novelas e séries. Como cidadã, dedicou parte do seu tempo, nos últimos anos, a causas como o veganismo e a defesa dos direitos dos animais.
Na sua vida pessoal, Rita enfrentou situações-limite que ela, aliás, não hesita em abordar na sua Autobiografia: uma agressão sexual na infância, com uma tesoura, por um estranho que viera a casa dos pais consertar uma máquina de costura; dependência de álcool e drogas; acidentes; a prisão, nos tempos da ditadura militar. Mas também muitos momentos de felicidade que ela igualmente descreve, na sua escrita clara e impiedosa, salpicada de ironia, humor e amor.
A edição brasileira da revista Rolling Stone, ao inventariar os 100 melhores artistas da música brasileira na sua edição especial de Outubro de 2008 (a n.º 25), pôs Rita Lee em 15.º lugar, numa lista que ia de Tom Jobim, o “maestro soberano”, em primeiro lugar, até DJ Marlboro, em último. Num texto assinado por Marcus Preto, Rita Lee é aí descrita como “a maior estrela do rock nacional”, com o feito, comprovado, de ter derrubado “as barreiras sexistas” num “terreno dominado por meninos”. E terminava citando Caetano Veloso, que na canção Sampa, dedicada a São Paulo, dizia que Rita Lee era “a mais completa tradução” daquela cidade.
Já a própria Rita, na Autobiografia (que dedicou às suas “famílias e bichos do passado, do presente e do futuro”), escreve no último capítulo, “Divagando”: “Dói mais sorrir na frente dos outros do que chorar sozinha, mas não devo levar a vida tão a sério porque ninguém sai dela vivo. Debochar de mim mesma é uma estratégia que sempre dá resultado positivo. Uma das coisas que mais me dão prazer é fazer o que não devo, tipo fumar na frente de quem faz campanha anticigarro.” E a finalizar: “A sorte de ter sido quem sou, de estar onde estou, não é nada que se compare ao meu maior gol: sim, acho que fiz um monte de gente feliz.”
Mesmo a fechar o livro, um poema seu, Ego: “Eu, hermafrodita/ Da água, respirei a vida/ No sangue que bebi, o soro/ Nos ares explodi, em choro/ Da gula que comi, a fome/ Da fêmea que nasci, homem/ Eu me transformei, em mim/ Do Deus que duvidei, o sim/ Das mortes que vivi, o além/ Dos vícios que virei, refém/ Dos bichos que sou, felina/ Na velha que estou, menina.” Escritas à mão, como remate, duas linhas feitas singelos versos: “Anima Mundi/ Animus Deo.”