Entrevista com o Ventura
Ventura usa a mentira para fazer passar a sua mensagem e, quando apanhado a mentir, demonstra não ter passado pela fila daquilo que permanentemente apregoa: vergonha.
Muito se tem discutido como deve o jornalismo tratar o fenómeno da extrema-direita populista. O Chega é, na representação parlamentar e de acordo com as sondagens, a terceira força política do país. Claro que isto obriga a que o jornalismo se relacione com o partido e com o seu líder.
Quando há entrevistas a André Ventura faz-se notar um sentimento generalizado de que está a ser promovida a normalização e banalização de uma personalidade que propaga um ideário xenófobo e racista e que insiste em mentir.
Mas eis que uma jovem jornalista entrevistou André Ventura decidida a mostrar como se faz. Chama-se Salomé Leal e a entrevista foi publicada no jornal Polígrafo, uma publicação vocacionada para a verificação de factos. O mote estava naturalmente dado: falaram do papel da mentira na comunicação do Chega e a jornalista deu exemplos concretos onde Ventura faltou à verdade, foi publicamente denunciado e avisado disso e, mesmo assim, não corrigiu ou apagou as publicações, mantendo-as ainda na sua página.
Escolho um exemplo de 11 de fevereiro. André Ventura publicou uma imagem com o anúncio de uma conferência com o tema “O papel do Estado na sociedade contemporânea”, que contava com presença de José Sócrates e que tinha agendamento para 13 de fevereiro. Junto a essa imagem Ventura escreveu o seguinte: “Isto podia ser piada mas não é! Vai mesmo acontecer! O sistema protege-se e protege os seus. Este país precisa de uma limpeza!”.
Salomé Leal confrontou Ventura com o facto de essa conferência ter acontecido há uma década, de ter sido publicamente avisado e de não ter apagado a publicação. Ventura desculpou-se assim: “Não tenho que apagar, a conferência aconteceu mesmo.” E ainda: “Eu não disse lá a data em que a conferência ia acontecer. Vocês é que estão a dizer.”
Costuma dizer-se que se apanha mais depressa um mentiroso do que um coxo e, ao longo desta entrevista, com mestria e simplicidade, a jornalista proporcionou que André Ventura se expusesse como o mentiroso que é. Curiosamente, também proporcionou que se apresentasse coxo.
Os exemplos e casos concretos sucederam-se e eram todos recentes: uma fotografia falsa do terramoto na Turquia, uma posição relativamente à eutanásia diferente da que agora apregoa, uma informação errada sobre o número de mulheres na direção do partido, etc. Não é preciso procurar muito nem recuar no tempo. Ventura usa a mentira para fazer passar a sua mensagem e, quando apanhado a mentir, demonstra não ter passado pela fila daquilo que permanentemente apregoa: vergonha. Por cima disto, anuncia chavões como o de dar voz aos que não tinham voz. Salomé não deixou de notar: “Mas dizer uma mentira não é dar voz a quem não tem voz.” Adiante que isto é infinito. Para o que interessa, ficou à vista de quem lê a entrevista que tipo de pessoa, e de político, é que ali está.
O tema da vergonha tem muito que se lhe diga.
Há um lado honroso em sentir vergonha. “Um homem é tão mais respeitável, quanto mais numerosas são as coisas de que se envergonha.” A vergonha pode mesmo ser confundida com integridade e receio de ser apanhado numa falha qualquer. A violência de passar uma vergonha encontra-se num escrito de Nietzsche: “Que encontras de mais humano? Poupar uma vergonha a alguém.”
É esta vergonha que Ventura não tem. Salomé foi exímia e fê-lo mostrar isso também. Foi-nos oferecida a oportunidade de ver Ventura apanhado em falso e de constatar como tal situação não representa para ele o que representa para uma pessoa honrada.
Ao mesmo tempo que demonstra as maiores falhas de carácter, Ventura alimenta a ideia de que habita nas profundezas da espiritualidade. Disse que ia à missa com regularidade, não esclareceu se ainda se auto-infligia castigos corporais ou qual a última vez que usou um cilício e defendeu que os políticos devem perder o medo de falar de Deus. Se Deus existir deve rir-se muito.
Qual é, de todos, o maior mérito de Salomé Leal? É que em vez de acabarmos de ler a entrevista com um sentimento de raiva e revolta, ficamos com uma sensação satisfatória. Conseguimos rir-nos deste vendedor de automóveis avariados em segunda mão e ficamos com vontade de ler a segunda parte, que já está publicada.
A autora é colunista do PÚBLICO e escreve segundo o novo acordo ortográfico