Mulher anuncia que engravidou com recurso a sémen do marido que morreu em 2019

Hugo autorizou, num documento escrito, que Ângela continuasse os tratamentos para engravidar após a sua morte.

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A mulher anunciou a gravidez esta segunda-feira João Silva

A mulher que protagonizou a batalha pela legalização da inseminação post mortem em Portugal anunciou que está grávida do marido, que morreu com cancro há quatro anos. Hugo deixou escrito que autorizava Ângela a utilizar o sémen que criopreservou antes de iniciar os tratamentos oncológicos.

"Foram anos de luta, o processo foi longo e demoroso… mas finalmente conseguimos! É com uma alegria enorme e com o coração cheio que partilho que batem dois corações dentro de mim", anunciou esta segunda-feira Ângela Ferreira, no Instagram. Este será o primeiro caso de gravidez por inseminação artificial com sémen após a morte do dador em Portugal.

Antes de morrer vítima de cancro aos 29 anos, Hugo tinha procedido à recolha e criopreservação de esperma no Centro Hospitalar e Universitário de São João (Porto), onde estava a ser tratado. E autorizou, num documento escrito, que Ângela continuasse os tratamentos para engravidar após a sua morte. "O Hugo fez a preservação do sémen antes dos tratamentos [oncológicos] porque queria ser pai. Não autorizou a doação para o banco público, fez preservação apenas para uso pessoal", relatou, então, Ângela à Lusa.

A divulgação da história desta cabeleireira do Porto numa série documental da TVI, em 2020, deu origem a um amplo debate e mobilização que acabaria por levar à mudança da lei de procriação medicamente assistida (PMA), que é de 2006. A alteração começou por ser impulsionada por uma petição, seguida de uma iniciativa legislativa de cidadãos, que em poucos dias reuniu o número mínimo de assinaturas necessário para ser discutida e votada na Assembleia da República.

A iniciativa legislativa suscitou a adesão do PS, do Bloco de Esquerda e do PCP, que apresentaram projectos de lei no mesmo sentido no Parlamento, onde a alteração à lei da PMA acabou por ser aprovada em Março de 2021, com os votos contra do PSD, do CDS e a abstenção de cinco deputados socialistas.

O que os subscritores da iniciativa legislativa de cidadãos e os deputados dos partidos de esquerda argumentaram é que havia uma discriminação incompreensível, dado que a lei da PMA permitia a inseminação de embriões após a morte e não havia qualquer obstáculo quando estava em causa a utilização de sémen de dador anónimo, podendo este em teoria não estar vivo, ao mesmo tempo que não dava esse direito quando o dador era alguém com quem a mulher viveu e que deixou expressa a vontade de ter um filho em comum.

Veto do Presidente da República

Vetado pelo Presidente da República, que quis ver clarificados aspectos relacionados com o direito sucessório, o diploma foi aprovado seis meses depois no Parlamento com propostas de alteração de vários partidos, que reponderam às dúvidas levantadas por Marcelo Rebelo de Sousa. Promulgado duas semanas depois pelo Presidente da República, o diploma está em vigor desde Novembro de 2021. Portugal tornou-se então um dos poucos países europeus a permitir a inseminação post mortem com esperma criopreservado.

Para poder aceder a esta técnica de PMA, segundo a lei, é necessário que o dador tenha deixado o seu consentimento por escrito e a inseminação apenas poderá acontecer seis meses depois da morte, tendo a mulher que provar que a concepção de um filho era um projecto parental comum “claramente consentido e estabelecido”. A criança nascida através desta técnica é considerada filha do dador falecido.

Ainda antes de ter conseguido engravidar, Ângela Ferreira teve, porém, que enfrentar mais um obstáculo. No hospital de São João alegaram que, para cumprir o estabelecido na lei, apenas podiam usar a técnica da inseminação artificial, o chamado tratamento de primeira linha, cuja taxa de sucesso é muito reduzida, estando assim vedado o recurso a tratamentos com taxas de sucesso muito superiores, como a fertilização in vitro.

Ainda foi necessário esclarecer esta questão que começou por suscitar uma interpretação restritiva no Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA). Quando se faz um tratamento de PMA, é preciso assinar um consentimento facultado pelo CNPMA - que teve que pedir à Assembleia da República que se pronunciasse sobre “o sentido e o alcance” da lei.

No relato pormenorizado que esta segunda-feira fez à TVI, Ângela Ferreira explicou que, após o insucesso da primeira tentativa, fez um novo tratamento no Hospital de São João em Outubro passado, que deu origem “a cinco embriões viáveis”. E terá sido a transferência de um destes embriões, em Dezembro passado, que resultou na gravidez agora anunciada.

Texto actualizado às 22h06 desta segunda-feira

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