Correntes d’Escritas: alunos desafiados a encontrar o livro certo para cada um

As sessões de escritores nas escolas fazem parte da tradição do encontro literário da Póvoa de Varzim. Nesta edição, o PÚBLICO acompanhou a visita de João Rios e Mário Rufino à EB2/3 de Aver-o-mar.

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Mário Rufino e João Rios a falar com e para os alunos DR

Um é poeta e leva 30 anos de livros. Outro estreou-se agora na escrita de um. O primeiro é do Norte, o segundo do Sul. Com histórias e experiências tão diferentes, João Rios e Mário Rufino fizeram uma boa dupla no desafio a alunos dos 12 aos 14 anos para descobrirem o livro certo. Aquele em que cada jovem se encontrará.

As turmas 6.ºC, 7.ºA, 7.ºE e 8.ºA já estavam instaladas no auditório da EB2/3 de Aver-o-mar, ao cuidado da professora bibliotecária da escola, Marta Antunes. Havia mais professores na sala.

Mário Rufino entrou primeiro, João Rios um pouco depois, com um ar meio despistado e chapéu de abas na cabeça. Gargalhada geral. “Então, gostaram da pinta destes cidadãos que vêm hoje aqui falar com vocês? Este chapéu opera maravilhas. Pouco discreto, chama logo à atenção.” Estava estabelecida a relação e a descontracção.

A abrir, Leonardo Rodrigues, 14 anos, 8.º ano, socorreu-se de breves biografias dos autores para os dar conhecer aos colegas. Confiante e didáctico, interrompia o discurso (que se podia ler num PowerPoint de três slides) sempre que suspeitava de que certos conceitos poderiam não ser claros para toda a audiência. “Pseudónimo”, “antologias”, “via-sacra” mereceram explicação. E bem.

Depois desta curta apresentação, João Rios deu início à sessão. “Preparados?” Reacção: “Siiim.”

E logo foi questionado: “Tem alguma obra que escreveu e não publicou?” A resposta veio com boa disposição: “O meu caixote de lixo está cheio de coisas não publicadas.” E falou directamente para quem tinha feito a pergunta: “Depois de escreveres, deves ter capacidade de distanciamento. Muitas vezes o que escrevo não sobrevive ao segundo escrutínio”, explicou, acrescentando de olhos bem abertos: “Faço uma apreciação de faca na mão.” Ou seja, é implacável consigo próprio. “Há que disciplinar o ego”, disse ainda.

Mário Rufino, que escreveu Cadente (Quetzal Editores), que vai ser lançado na Feira do Livro de Lisboa, juntou-se à conversa: “No texto final, o que fica é um terço. A primeira versão nunca presta. Há sempre melhores versões de nós próprios.”

Lembrou que o primeiro livro de Saramago, “o nosso Nobel”, Clarabóia, “não foi publicado logo”.

“Tentar e errar, tentar e errar, até acertar”

O crítico literário e professor de Português (Língua Estrangeira) sugeriu aos jovens que lessem em voz alta e que escrevessem sobre qualquer assunto, dando pistas para o processo: “Tentar e errar, tentar e errar, até acertar.” Fez então a analogia com os passos num jogo de computador, para melhor chegar a eles: “Num jogo de vídeo, passam para o nível seguinte e o grau de dificuldade vai aumentando, mas vocês também vão estando mais preparados.”

Às tradicionais questões sobre inspiração, os autores adicionaram nas respostas breves ideias sobre processos e propósitos. João Rios disse que qualquer livro dele “persegue uma ideia, uma proposta, uma visão do mundo, uma voz” que o assalta. Mário Rufino assumiu-se como “mal-educado”. E explicou: “Olho para as pessoas, escuto conversas. A inspiração vem muitas vezes de histórias de pessoas ouvidas no comboio.”

Sobre a inspiração, João contou uma história que classificou como “bizarra”: “Este teu amigo saiu de um bar às três e meia da madrugada e lembra-se de olhar para montra de um banco e ver a cara do Cristiano Ronaldo [numa publicidade] e dizer simplesmente isto: ‘Rebelião das espécies’.” Estava encontrado o título e o tema para um dos seus livros de poemas que fecha a trilogia Nómadas do Sangue.

Também ali se questionou a utilidade/inutilidade dos livros e se disseram frases como: “Os livros não têm de servir para nada”, “o livro é um espaço de liberdade”, “uma biblioteca é um grande conjunto de perguntas”, a literatura é um espaço de grandes possibilidades”.

“Não deixem o algoritmo substituir-se a vocês”

João Rios, que é professor de História do 2.º ciclo, invocou as suas avós, “uma do mar e outra da terra”, para recordar que lhe ensinaram que “as palavras dão olhos ao mundo”. Por isso é que escreve.

Eu não acredito que não exista um livro que não encaixe em cada um de vocês. Aceitem o desafio de o procurar. Porque atrás de um vêm outros.” No meio do burburinho, escutou-se sumidamente a voz de um dos alunos: “Já o encontrei.” Mas não possível identificá-lo. Ficou a curiosidade de saber qual teria sido.

João disse ainda: “Se não gostarem de um [livro], abram outro. De certeza que há por aí uma página escrita que vos diz alguma coisa.”

O poeta traria para a sala de aula uma caixa de cartão. Abriu-a mesmo ali, mostrando exemplares de Estuário Inciso, que reúne uma selecção de 30 anos de poemas, numa edição da Abysmo, cuja morte do editor, João Paulo Cotrim, lamentou. O livro seria apresentado no dia seguinte, no Cine-Teatro Garrett, também no âmbito do Correntes d’Escritas, que decorreu de 14 a 18 de Fevereiro na Póvoa de Varzim.

Numa sessão bastante participada e disciplinada, dentro do que é possível nestas idades (perto do final, houve uma sapatilha a “passear” por entre os colegas), também se falou de reguadas em tempos antigos e se elogiou o papel dos professores. Mário Rufino, que já foi colaborador do PÚBLICO, deixou um alerta: “Façam as vossas associações de ideias. Não deixem o algoritmo substituir-se a vocês.”

“Gosto muito de escrever, acalma”

A professora bibliotecária que organizou a visita em conjunto com as Correntes d’Escritas, Marta Antunes, explicou que a escolha das turmas é feita de modo a dar oportunidade a diferentes alunos dos vários níveis, em cada ano, já que em todas as edições a escola acolhe escritores participantes no festival. Assim, não há “repetentes” e consegue-se “que um maior de alunos participe nesta experiência”.

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O aluno Leonardo Rodrigues (14 anos, 8.º ano) socorreu-se de breves biografias dos autores para os dar conhecer aos colegas DR

O aluno que abriu a sessão e deu a conhecer as biografias dos convidados disse ao PÚBLICO que já foi “mais leitor, durante o 5.º, 6.º ano”. No entanto, conta: “Gosto de pegar num livro porque, neste tempo moderno, é só redes sociais e telemóvel e às vezes é bom estar a folhear uma página, a escrever, gosto muito de escrever, acalma. É outra actividade.”

Disse ainda: “Eu vou para letras, quero seguir Comunicação e ser professor, mas a profissão de professor está a ser muito afectada. Vamos ver. Definitivamente, prefiro letras a números.”

Pelo entusiasmo dos alunos, por distracção ou pela velocidade com que o tempo passou, ficou só a faltar um pouco de leitura. Foi pena.


O PÚBLICO esteve na Póvoa a convite do festival

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