Abusos sexuais na Igreja: os testemunhos e os números
Foram validados 512 testemunhos, mas apenas 4% das vítimas apresentaram queixa judicial e 43% nunca tinham denunciado o abuso antes de terem falado com a Comissão Independente.
Testemunho de um homem nascido na década de 1950 sobre o abuso que sofreu num seminário no interior do país
"Aos dez anos vou então para o seminário X: era uma forma de dar menos despesas aos meus pais, que viviam muito aflitos. Era uma aparente vocação. O padre B era o prefeito da camarata e engraçou comigo. Ia à minha cama com a lanterna e apalpava-me… Perguntava-me se eu já pecara. Vivi sempre sobressaltado. Tinha medo, porque era pecador e ia para o Inferno. Mandava-me ir buscar rebuçados de cada vez que tivesse maus pensamentos. Houve um dia que consegui 26 rebuçados. Quando ia ao seu quarto buscar, ele apalpava-me todo e metia a língua toda. Até que comecei a pedir para me confessar com outros padres para não ser sempre o mesmo. Só que, às tantas, todos sabiam dos meus pensamentos e da minha vida. Através de um amigo, chegou aos ouvidos do vice-reitor, que me deu um chapadão. E fui expulso por más companhias (...)
Fui parar a Leiria para um refúgio para infância desvalida. Eram 20 rapazes órfãos.
Estava lá o Frei W, era bem pior, porque era sádico, porco, muito mau. Não aprendia nada. Tinha modos por ter andado no seminário e, por isso, no meio daqueles rapazes era eu que acompanhava o Frei W. Num dia fui com ele a casa de um benfeitor e, durante a noite, disse-me para dormir com ele. Ia rodando entre os rapazes. Deitava-se e adormecia. Acordava com o pénis dele entre as minhas pernas e todo sujo. Depois dizia: “Agora tens de te ir confessar.”
Sentia muita culpabilidade, atolada em pecado. Não contava nada na confissão… Sabia lá."
Testemunho de M (partiu numa viagem de finalistas do 2.º ciclo organizada pela escola particular que frequentava no interior norte do país; tinha então 12 anos e durante a noite foi vítima de abuso por parte do padre que os acompanhava, o professor de Moral)
"Pelo menos mais outros dois rapazes do meu quarto [foram alvo de abusos], éramos os mais tímidos, talvez os mais medrosos. Estávamos juntos. Eu fui uma noite, o F outra e o H foi duas vezes (a primeira e a última da viagem). Tenho vindo a ver o vosso trabalho [da comissão independente]. Decidi que era agora. Sei que ele ainda é vivo, mas já não trabalha naquela escola. Mas penso onde andará esse tarado, pois, em qualquer sítio, ele fará mal a outros. Nunca me esquece que o meu amigo não aguentou e uma noite chegou a meio da noite e vinha a chorar, a chorar, e estava sentado na cama dele no nosso quarto. Ele não disse nada. E eu também não contei que já tinha sido vítima disso na noite anterior. Então perguntei-lhe se ele tinha medo. Ele a chorar disse que sim. E eu disse-lhe para ele se deitar na minha cama e assim dormíamos os dois e adormecemos, mas ele demorou tanto tanto a parar de chorar. Não sei descrever isto.
Foi no Verão de 2000 e nós estávamos de viagem de turma e estávamos ali sozinhos, longe de casa e dos pais. E não havia nada nem ninguém a quem contar. E só nos consolámos um ao outro. E desculpem, pois agora estou eu a chorar. Escrevo isto e não sei mais dele. No final dessa viagem acabámos a escola, separámo-nos e eu nunca mais o vi. Soube que ele partiu com os pais para a emigração. Sabem o que penso? Onde andará ele? E se um dia isto for com o meu filho? Filho da puta do padre."
Testemunho de F, nascida na primeira década do século XXI. No seu 7.º ano de escolaridade, com 12 anos, confessava-se com alguma regularidade enquanto andava na catequese. Sentiu-se alvo de abuso pelo padre, com cerca de 45 anos, responsável pela confissão.
"O padre fazia-me perguntas porcas no confessionário. Obrigava as miúdas a falar de coisas porcas. Ele não tocava nas raparigas, mas perguntava se nos masturbamos, se enfiamos o dedo, se pensamos em fazer amor. O mesmo acontecia com muitas moças dos escuteiros e da catequese. Várias delas juntaram-se e contaram à chefe, que acreditou no relato das jovens. A chefe disse para não nos irmos confessar mais e que os chefes iam falar com o bispo. Não aconteceu nada! Nada foi feito… Os escuteiros foram expulsos e o padre ainda lá está. E eu sei que faz o mesmo.
Fiquei com muita vergonha e com pesadelos. Tenho muita vergonha ainda e acho que sou suja. Não consigo ter namorados, porque tenho medo que me perguntem coisas ou queiram fazer coisas para me sentir porca. O padre meteu muita vergonha. E perguntava coisas como se fosse maluco. E arfava e gritava com as raparigas, ameaçava com o diabo."
Guillaume, nascido na década de 1970, turista francês. O relato foi feito pela socióloga Ana Nunes de Almeida
"Guillaume, de nacionalidade francesa, viera com os pais e o irmão mais novo passar férias a Portugal. Contactou a comissão e falei com ele por Zoom durante um sábado de manhã. A meio a entrevista foi interrompida, pois Guillaume entrou um choro convulsivo. Tinha então 16 anos e, como muitos turistas, visitava com os pais a capela na igreja. Ao saírem, dirigiam-se para a porta, vê alguém que identificou com um padre a chamá-lo com a mão. Tivera uma educação católica e, para ele, padres eram pessoas em quem se podia confiar. Segue-o.
O padre teria uns 60 anos, leva-o para o fundo da igreja e mostra-lhe uma virgem cujo olhar parecia acompanhar o seu. Achou mágico. Depois, leva-o para a capela, sempre a falar português e com gestos para mostrar outra coisa: só os dois. Mostra-lhe os dentes de uma caveira e depois os dele. Começa a acariciar-se nas calças, sempre a olhar para Guillaume, e Guillaume nota que ele tem uma erecção. ‘Je ne me sens pas très bien… quelque chose qui ne va pas’, disse. Dá-se conta de que está sozinho com o padre, que se coloca atrás de si.‘Coloca o sexo por cima das minhas calças e começa-me a acariciar as nádegas. Cheio de pânico, entro noutro estado’, recorda.
A um dado momento surge um outro homem que interpela o padre. E este, subitamente, começa, afinal, a falar em francês e pergunta a Guillaume se o pai estava com ele. Começa a enervar-se e repele-o, ordenando-lhe que saia. Guillaume sai da capela, entra na igreja completamente vazia e encontra a porta fechada à chave. Encontra no exterior os pais, perturbadíssimos, preocupados com a sua ausência e diz-lhes que esteve com um padre. ‘Ele fez-me coisas.’ A mãe desvalorizou e ralhou-lhe: ‘Que mania tens de fugir. Assim ficas a saber que não deves afastar-te dos pais.’"
Abuso ocorrido com um homem nascido na década de 1940, já falecido. É relatado pela irmã
"O abuso acontecia em casa dos próprios pais, numa casita que havia no quintal para guardar coisas. O padre, que devia ter cerca de 40 anos, visitava a casa após a morte do nosso pai para dar apoio à nossa mãe. Não esteve muito tempo na paróquia. O meu irmão faleceu agora. Ora, eu penso que ele nunca contou nada do que eu vi. E o que eu vi não foi bonito e não posso eu ir para o outro mundo, falecendo a carregar comigo este segredo.
Uma vez, na tal casita, eu estranhei. Eu estranhei e quando lá fui espreitar estava o meu irmão, coitadinho. Ele era muito bonito e perfeito, branquinho de pele. Estava ele despido de calças e roupa de baixo e o padre, assim meio que no chão, a pôr o sexo dele na boca. Nunca tal tinha visto na vida. Dantes essas coisas não se viam. Parecia tudo a passar muito rápido, pois fugi com o olhar. E quando voltei a olhar estava o meu irmãozito, coitadito dele, o que ele sofreu… Sei lá eu o que aquela alma pode ter sofrido. Estava ele agora no chão, como um animal, e ele por trás, o padre, a enfiar-se nele. E ele aflito de lágrimas de chorar. Peço desculpa, mas já não consigo contar mais e espero que chegue para saberem que foi tudo verdade. Ele detestava padres, tanto que disse que quando morresse não havia de querer nenhum. Que o deixassem ir em paz e assim foi quando faleceu agora há pouco tempo."
Mulher nascida na década de 1980 em que o padre era director do coro numa aldeia muito pequena. O padre abusador, pessoa de grande confiança da mãe, era catequista na paróquia, teria na altura 50 a 60 anos. Já faleceu
"Não me lembro do princípio nem do fim. Sabe que frequentava o primeiro ano do ciclo e que pertencia ao coro. A casa do padre ficava ao fim de uma rua, escondida, onde não havia ninguém. Ele ia-me buscar a casa, porque eu cantava e havia os ensaios do coro que ele dirigia. Era essa a desculpa...
Depois íamos para sua casa e durante mais ou menos três horas via TV, lanchava e depois, sentada no sofá, começava a tocar-me. Nunca houve penetração. Só uma vez encostou o seu pénis ao meu corpo. Despia-me, mas não totalmente. Baixava as cuecas, mexia-me e masturbava-me. Não me lembro como terminou, mas talvez o facto de eu ter ido estudar para outra escola fora da aldeia tivesse sido a causa. Não me lembro do último dia. A última imagem de que me lembro é de eu própria a masturbar-me. Até ter contado e de agora a fazer psicoterapia percebo o sentimento de culpa que sentia e que me impediu de o fazer. Sentia que o que me acontecia era por minha culpa e era errado. Sabia que era algo de mau, que não queria, que não devia acontecer. Mas não me lembro de ser ameaçada. Sentia-me culpada. Um padre amigo a quem contei, em 2016, aconselhou-me a ligar-vos. Já na altura do caso Casa Pia eu congelava quando ouvia as notícias.