Ciclone de 1941: o “demónio” de vento que varreu Portugal
O pai de Rosária ficou coberto pela neve. Em Alhandra, dezenas de pessoas morreram afogadas. Há 82 anos, a destruição foi semeada pelo vento num dos temporais mais violentos de que há registo no país.
A única memória que Rosária tem do pai é do dia do ciclone. Lembra-se dos gritos das mulheres em seu redor, de mexerem nos bolsos do corpo já sem vida e de lá tirarem um punhado de laranjas. Joaquim do Simplício apanhara-as ao longo do caminho de cinco horas que percorreu a pé na fúria do vendaval. Ao chegar ao alto da aldeia da Gralheira de Montemuro, acabou arremessado pelo vento, quando já estava exausto da travessia. A poucos passos de casa, o seu corpo ficou coberto de neve.
Ali ficou com as laranjas que tinha trazido, conta-nos Rosária, que na altura tinha três anos. “Ele trazia laranjas para nos dar a nós”, diz a filha mais nova, referindo-se a si e ao irmão Porfírio. “Nunca as comemos.” As mãos, calejadas da idade e da vida de trabalho, acariciam a bengala que traz consigo. “É isso que me lembro do meu pai, não me lembra mais nadinha.”
Naquele dia, o “tempo já estava voltado”. Sentada num banco de granito numa tarde de Fevereiro, ao sol, Rosária veste preto da cabeça aos pés e vai-se aconchegando para não sentir tanto o frio. Está acompanhada por pessoas da aldeia e por um gato que ali foi abandonado, que se enrosca nas pernas e não sai da sua beira. Com o olhar pousado na serra, recorda o dia em que o vento lhe roubou o pai. Joaquim do Simplício tinha ido a pé com um grupo de homens para um julgamento em Cinfães, por serem testemunhas no negócio de uma vaca. Depois, “o tempo virou para pior.”
Mas a mãe de Rosária, Maria do Céu, estava tranquila: esperava que o marido chegasse no dia seguinte, já a tempestade teria amainado. Só que o julgamento foi adiado e os homens quiseram voltar à terra, apesar de o caminho pedregoso estar coberto de neve e de gelo. O cenário que encontraram foi mais perigoso do que pensaram. Não o sabiam, mas estavam perante uma das tempestades mais fortes que atingiram Portugal.
Era já noite quando Maria do Céu foi apanhada desprevenida pela notícia de que o corpo do marido tinha sido encontrado às portas da aldeia. Assim que o soube, desmaiou. Além da recordação das laranjas, o que Rosária sabe do seu pai era o que a mãe lhe ia contando, “lá de longe a longe”. Os outros evitavam tocar no assunto. “A gente nunca falava assim nisso. A minha mãe também não falava porque a gente começava logo a chorar”, recorda a filha, com a voz embargada. “Não tive infância nenhuma. Fomos criados sem pai, foi muito duro.”
Os 82 anos que passaram não impedem que as lágrimas se desprendam dos olhos de Rosária — é assim que todos lhe chamam, apesar de ter descoberto quando entrou para a escola que o seu nome no registo era Maria do Céu, como o da mãe. “Foi uma vida muito triste...”
Foi a 15 de Fevereiro de 1941 que o violento temporal atirou o pai de Rosária para a morte. Nesse dia, morreram duas pessoas na Gralheira: Joaquim do Simplício e Melchior da Costa. Pelo país, foram dezenas — se não mesmo centenas — as pessoas que morreram por causa do trágico ciclone que varreu Portugal.
“Nunca houve tamanha destruição” no país como um todo como nessa tempestade de 1941, garante o meteorologista Paulo Pinto, do Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA). Olhando para os dados do vento, do território afectado e para os relatos de quem o viveu, o meteorologista admite que é raro uma tempestade atingir todo o país de forma tão intensa.
Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram, mas os jornais da época falam em mais de uma centena de mortes e centenas de feridos. Para além de um elevado número de vítimas, houve estragos também difíceis de contabilizar e que, além de terem abalado a economia nacional, interromperam as comunicações durante dias. “Foi uma situação catastrófica para o país”, resume a geógrafa Adélia Nunes, autora de um dos poucos estudos sobre o tema. Portugal foi o país mais afectado, mas a destruição também chegou a Espanha.
A tempestade moveu-se de sudoeste para nordeste, de Sagres até Bragança, atravessando todo o território continental. No Algarve, registaram-se rajadas de 140 a 150 quilómetros por hora, assim como nas Berlengas. Na serra do Pilar, no Porto, um anemómetro registou ventos de 169 quilómetros por hora antes de avariar, levando a crer que a velocidade tenha excedido aquele número. Deverão ter ocorrido rajadas superiores a 170 quilómetros à hora em grande parte do país, acredita Paulo Pinto.
Desde então, tem havido fenómenos de vento forte (e os recordes de rajada já foram ultrapassados), mas tal acontece apenas a nível local, numa fatia mais pequena do território — como no caso da tempestade Leslie, em 2018. “Nada que se comparasse com isto...”
Uma homenagem em granito
Na Gralheira, não se sabe que velocidade atingiu o vento. Sabe-se que foi forte o suficiente para atirar adultos pelos ares e fazê-los voar como penas. Nos dias que se seguiram ao ciclone, foi posta uma pedra de granito à saída da aldeia, perto do caminho por onde deveriam ter chegado os homens da Gralheira. Assim ficou cicatrizada a homenagem aos dois homens: “Lembrai-vos das vítimas do ciclone”, lê-se nas letras pintadas a preto que já esmorecem no marco de pedra. No cimo está uma cruz preta, como é tradição por estas terras. Em baixo, a data do ciclone e as iniciais de Melchior da Costa (M.C.) e de Joaquim Luís (J.L.) do Simplício. Rosária diz que lá vai muitas vezes rezar pelos dois.
Na mesma aldeia, Carlos Silvestre era uma criança quando passou o ciclone. Tinha quase sete anos e dormia na cama com o irmão quando ouviu o vento a levantar uma parte do telhado de colmo. O sopro do vento assustava-o, ouvia-o bater sem sossego nas janelas de casa. “Era uma ventania e fazia ali um ruído enorme, apesar de a casa ficar num sítio baixo e abrigado”, conta. “Sempre neve, sempre neve...” De seguida, ouviu gritos.
Na casa de Melchior da Costa, seu vizinho, cozia-se a broa e os conterrâneos juntavam-se para aproveitar o calor do forno. O pai de Carlos Silvestre era uma testemunha influente na disputa judicial sobre a venda de uma vaca e também se tinha feito ao caminho, com um capote, safões e luvas. Mas estava adoentado, e a neve rapidamente se infiltrou nas roupas. Acabou por voltar para trás e o julgamento foi adiado.
Carlos Silvestre é hoje um dos guardiães desta história. Para explicar como viveram aquela noite do “temporal bravo”, leva-nos até ao topo da serra, a cerca de 1100 metros de altura, onde os “infelizes” foram empurrados pelo vento. O vento gélido e a neve que se acumulava no caminho irregular dificultavam a travessia. Dos cinco homens que regressaram a pé, um deles conseguiu passar a custo por um pontão e dar o alerta dos infortúnios em que se encontravam os outros.
Os outros dois rapazes do grupo eram os mais novos, irmãos, e também foram atirados pelo vento; conta-se desde então que se abraçaram e tiveram a sorte de aterrar mais perto da aldeia. Ainda ouviram os gritos dos dois homens mais velhos que acabariam por morrer, mas não tiveram força para se levantar. Quando encontraram os dois irmãos, “não diziam nada direito”.
Não tardou que vários homens acorressem e seguissem as pegadas dos desaparecidos na neve, encontrando os objectos abandonados pelo caminho. Tanta era a força do vento que os lampiões se apagavam: valeu aos socorristas a única lanterna eléctrica que havia na povoação. Foi assim que encontraram um primeiro corpo. Ao tirarem a neve, perceberam que era Joaquim do Simplício. O corpo de Melchior da Costa só foi descoberto no dia seguinte.
Foram “vítimas do Inverno”, escreveu Carlos Silvestre no livro Gralheira de Montemuro, onde relata a intempérie. Aquela noite “parecia o fim do mundo”, descreve, e “o que mais angustiava os corações daquela gente era saber que os homens estavam a morrer ali a dois passos, sem poderem ir em seu auxílio”.
Em 1941 não havia ali estradas e a povoação da Gralheira vivia isolada no seu reduto, entre Castro Daire e Cinfães. “Quem ali nascia, ali morria”, conta Carlos Silvestre. Agora, há estradas ladeadas por giestas e penedos de granito, e o gelo perdura nas beiras em que o sol não toca. Quando havia semanas de neve, os caminhos gelavam e nem o carteiro aparecia durante dias.
O isolamento causado pelo ciclone foi ainda maior. Com as comunicações interrompidas por todo o território e com centenas de estradas intransitáveis, só no dia 21 de Fevereiro chegava a notícia da morte destes dois homens da Gralheira aos jornais. Era uma das centenas de notícias sobre o ciclone que permearam as páginas dos periódicos no segundo mês de 1941.
Um dia de angústia
As mortes e destruição espalharam-se pelo país ao sabor do vento. A 17 de Fevereiro, o Diário de Notícias falava já em 78 mortos, 20 deles em Lisboa, e de centenas de feridos; só no Tejo havia cerca de 40 mortes. No Jornal de Notícias do dia seguinte dava-se conta de mais de uma centena de mortes causadas pelo ciclone. “São raras as terras do continente que a fúria do vendaval não atingiu profundamente”, lê-se no diário O Século de 19 de Fevereiro.
Na imprensa da época, os efeitos do temporal eram evidentes e ocuparam as primeiras páginas durante semanas. O ciclone assumiu “proporções trágicas” e tinha sido “assolador e apavorante”, contava O Primeiro de Janeiro. O temporal teve uma “fúria diabólica”.
O Diário de Lisboa dizia que a capital tinha sido “açoitada por um vento ciclónico de extraordinária violência”. No Século lia-se sobre o “dia horrível, de pavor, de desolação, de angústia e de tragédia”. Milhares de árvores foram derrubadas — e chegaram a ser apresentadas na imprensa como uma das “grandes vítimas” do temporal. O ciclone desfez o sustento de muitas famílias num país predominantemente agrícola que vivia em ditadura.
Dezenas de pessoas foram parar aos hospitais com ferimentos causados pela queda de chaminés, telhas, árvores ou tabuletas. Outras tantas ficaram feridas por terem sido atiradas ao chão pelo vento. Pelo que se lê nos jornais dos dias seguintes, houve pessoas socorridas que acabaram por não resistir aos ferimentos.
As mortes ascenderam às dezenas, possivelmente centenas: dois rapazes que trabalhavam numa olaria em Lisboa morreram depois de terem ficado soterrados pelos escombros de um palheiro. Em Évora, duas chaminés caíram e mataram uma menina de quatro anos e um bombeiro voluntário. Na região de Aveiro, onde até o sal das salinas desapareceu com o vento, morreram três rapazes, uma mulher e uma criança; foram ainda encontrados os cadáveres de três moliceiros dentro de dois barcos que se afundaram.
Os jornais da época mostram que a população viveu momentos de “horror”. No Barreiro, o vento e a subida das águas assustavam quem lá morava e uma criança morreu depois de ter sido atingida pelo desabamento de um muro. Perto de Via Longa, uma menina de 18 meses morreu quando a casa dos seus pais desabou. No Montijo morreram quatro pessoas afogadas e houve cinco mortes em Setúbal. Em Abrantes, o vento arrancou 200 mil árvores e morreram afogados um barqueiro, a sua mulher e dois filhos. Nos arrozais de Alcácer do Sal morreram oito pessoas afogadas nas cheias. Os jornais dão ainda conta de um homem que morreu na Madeira atingido por uma árvore, quando tinha ido ao Funchal tratar do seu casamento.
E há também espaço nas notícias para casos mais caricatos, como o de uma vaca que voou pelos ares com a força do vento, em Viseu, acabando por morrer. Depois do temporal em Lisboa houve uma “invasão de ratazanas” mortas que apareceram no Terreiro do Paço e em Alcântara, relata o Diário de Notícias. Em Marvão, um carteiro foi atirado ao chão pelo vento e as cartas que transportava voaram pelos ares “para não mais serem vistas”. Já uma mulher em Vouzela “deu à luz em pleno caminho, e já de noite”, lê-se no Século. A criança, “apesar de ter caído na lama e ficado encharcada, nada sofreu, como a mãe”.
Centenas de barcos ficaram destruídos por todo o país, com 70 pescadores feridos em Sesimbra. “De outro igual não guardam memória os velhos homens do mar, afeitos dos perigos da tempestade e acostumados a lidar com a morte”, lê-se no Diário de Notícias de 17 de Fevereiro de 1941. Perto de Ermesinde, a queda de um “enorme pinheiro” causou a morte a três passageiros de um comboio, parado por causa de árvores caídas nos caminhos-de-ferro. Várias fragatas e navios afundaram-se na região de Lisboa, e os gritos de desespero ouviram-se em terra, conta o Diário de Lisboa.
Para O Século, este foi “o maior temporal de que há memória” — 82 anos volvidos, o diagnóstico ainda é certeiro.
Uma tempestade como nunca se viu
Esta tempestade de vento não seria hoje considerada um ciclone. “O termo que antigamente os nossos antepassados davam a este tipo de fenómenos era ciclone, mas ele não tem nada que ver com o conceito que temos actualmente”, explica o meteorologista Paulo Pinto. À luz dos conceitos hoje usados, a intempérie de 1941 foi uma tempestade extratropical “com características muito especiais”, que produziram ventos extraordinariamente fortes.
Neste ciclone, gerado por um fenómeno de ciclogénese explosiva — em que há uma perda de massa brusca e de grande magnitude —, tivemos os níveis de pressão mais baixos desde que há registos em Portugal, há quase 170 anos. “O valor mais baixo da pressão atmosférica atingido nessa altura foi um valor recorde”, aponta Paulo Pinto. “Ainda hoje não foi ultrapassado.”
A pressão baixa e os ventos fortes tornaram a tempestade demolidora, e o facto de ter afectado quase todo o país é inédito. Ainda assim, há poucos dados sobre o ciclone de 1941. Nunca foi feito um relatório oficial e os registos (além da imprensa da época) são escassos. Qual a razão para isso? “Diz-se que temos uma memória de catástrofe muito reduzida. Tendemos a esquecer as catástrofes se não forem recorrentes”, explica Adélia Nunes, da Universidade de Coimbra.
O estudo feito por esta geógrafa refere que os prejuízos no país foram avaliados em cerca de um milhão de contos, o que na altura correspondia a metade do orçamento de Portugal. Hoje, os prejuízos rondariam os cinco mil milhões de euros.
O choro das águas em Alhandra
“As cheias cobriram de água os olhos dos camponeses.
Perdidas as margens, o rio fez-se mar – mar de aflições”
(Soeiro Pereira Gomes em Esteiros, 1941)
Alhandra foi um dos lugares mais fustigados pelo temporal. Nas águas do Tejo que banham a vila, perto de Vila Franca de Xira, morreram dezenas de adultos e crianças no dia do ciclone. Quase como se fosse um prenúncio, o dia de sábado tinha amanhecido com nuvens negras, rajadas fortes e chuva. As cheias não eram raras naquela zona e o dever do trabalho falava mais alto.
O pior de tudo era o vento, diz João Luís Rodrigues, mais conhecido pela alcunha de “Grilo”. Tinha quase 11 anos na altura e hoje descreve como a tempestade envolveu as águas, imaginando-a à sua frente. “Aquilo era um demónio, filha. Era um demónio...”, recorda, num lar de Alhandra onde agora vive.
João Luís Rodrigues nasceu em Alenquer, mas acabou por ir trabalhar para Alhandra quando ainda era criança, a acartar tijolo. “Ganhávamos 25 tostões e levávamos muita porrada”, diz-nos, sorrindo. O ritmo que descreve contrasta com o seu passo vagaroso.
A vida de trabalho começava cedo para muitas crianças. Além das telhas e da fábrica de cimento, muitos trabalhadores pobres dali e de outras terras ganhavam o seu sustento nos mouchões, umas frágeis ilhas no Tejo usadas para fins agrícolas e produção de gado. Os trabalhadores iam de barco para os mouchões e lá ficavam durante dias. No dia do temporal, as águas revoltas impediram que homens, mulheres e crianças saíssem de lá. Muitos nunca chegaram a regressar.
“A gente estava a ver que morria toda a gente”, conta-nos João “Grilo”. Apesar de na época ser um “rapazote”, lembra-se de ir para o centro da vila ver a água subir, “cada vez com mais medo”. Sabiam que havia pessoas do outro lado das águas que não conseguiriam fugir.
As famílias em terra firme começaram a juntar-se no cais à espera de quem tinham no outro lado. Mas logo veio a notícia das mortes. Começaram a chegar barcos carregados com sobreviventes e com corpos sem vida. “Vinha um, vinha outro. Lembra-me isso tão bem”, revive João Luís, de 92 anos, nas palavras que saem calmas da sua boca. As mãos levemente pousadas em cima da mesa.
Os valados que seguravam as águas nos mouchões rebentaram e deixaram as propriedades submersas. Havia quem se atirasse ao rio para tentar salvar quem perecia nas águas. Milhares de animais também morreram afogados nesta zona.
O Século de 17 de Fevereiro registava 27 mortes nos mouchões e cerca de 200 desaparecidos. “Morreram muitos. As pessoas estavam em cima dos palheiros e não tinham socorro nenhum…”, recorda o ancião. Ficaram presos nos mouchões durante horas ao frio, com fome, e com os corpos daqueles que não conseguiram salvar. A 18 de Fevereiro de 1941, três dias depois da tragédia, o jornal dava conta da centena de pessoas que “foram salvas a muito custo”.
Um rebocador ia trazendo a Alhandra os mortos e os sobreviventes que, traumatizados, “nada diziam com nexo”. Para os que se salvaram, tinha sido enviada a bordo do rebocador uma provisão de medicamentos, aguardente e café, “destinados a reanimar os que se salvassem”, lê-se no Século. Houve cadáveres que nunca chegaram a ser identificados por serem de outras regiões do país, quase desconhecidos naquelas paragens. Alguns dos mortos deixaram famílias inteiras por sustentar, como um dos trabalhadores que tinha sete filhos menores.
As “‘formidáveis’ ondas afogaram muitos humildes rurais”, lê-se no jornal O Século de 17 de Fevereiro. “Foi a água, senhor. Foi essa maldita que aí está”, afirmara um velho campesino, como era descrito no diário, enquanto olhava com desolação para a água revolta e suja do Tejo.
Como mostra o Anuário Estatístico de 1941, feito pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), as águas e as terras eram o sustento da grande maioria daquelas pessoas. A maior parte dos portugueses tinha como ocupação os trabalhos agrícolas (46% do total de 6,8 milhões de recenseados), num total de 3,2 milhões de trabalhadores agrícolas registados. Havia ainda 112 mil pessoas a trabalhar na pesca e caça e 47 mil pessoas em transportes marítimos e fluviais.
Em Alhandra e noutras zonas litorais, muitas das mortes terão acontecido por causa da sobreelevação do nível das águas. Isto acontece quando há uma passagem de depressões muito cavadas, com valores de pressão atmosférica demasiado baixas. É um efeito a que também se dá o nome, em inglês, de storm surge, com acumulação e empilhamento de água devido ao vento muito forte, explica o meteorologista Paulo Pinto.
Nos mouchões, era comum as pessoas andarem a pé enxuto mesmo durante a maré cheia. “O que terá acontecido é que, dada esta sobreelevação, o nível da água no estuário do Tejo pode ter subido entre um metro e um metro e meio e isso fez com que as pessoas que andavam com 40 ou 50 centímetros de água rapidamente tenham ficado sem pé e morrido afogadas.” Além disso, os valados rebentaram. As águas estavam agitadas e o vento dificultava qualquer salvamento.
Hoje, a paisagem pacata da zona ribeirinha de Alhandra não deixa adivinhar o que ali se passou em 1941. Da zona do cais vê-se, de frente, o mouchão de Alhandra, uma pequena ilha que descansa no Tejo. Mais para a direita (a sul), ficam o mouchão do Lombo do Tejo, o mouchão da Póvoa e as lezírias da Ponta da Erva. Nesses locais, no dia do ciclone, centenas de pessoas lutaram contra a força das águas.
Agasalhada, Maria da Piedade pousa os olhos no mouchão de Alhandra e deixa que as memórias do passado ganhem forma nas palavras do presente. Tinha dois meses quando o ciclone devastou a vila, mas só o viveu através das palavras do pai, nos serões passados a jogar às cartas. “O meu pai dizia que Alhandra era uma terra tão bonita e que ficou uma terra de gente triste, que só se via mulheres de preto”, recorda. Na sua infância ouviu “histórias de arrepiar”. Não havia memória de um temporal assim, assegura Maria da Piedade.
O seu tio Germano da Fonseca tinha 27 anos na altura e descreveu ao jornal O Século como ficou refugiado num sótão com os dois irmãos mais novos, a tremerem de frio. A água foi subindo e Germano só lhes pedia que se agarrassem a si, que estavam salvos. Mas um dos irmãos gemia baixinho e abria muito os olhos. “Tinha-o nos meus braços. Não me respondeu”, contou. Tinha morrido. Quando amanheceu, os irmãos sobreviventes continuaram a gritar até que os foram resgatar.
Os salvamentos
Seguiram-se dias de luto. Muitas famílias ficaram sem sustento, sem alento. “Foi uma desgraça muito grande”, tenta traduzir em palavras João “Grilo”. No Diário de Notícias de 18 de Fevereiro de 1941 é noticiado o funeral de 13 das vítimas do ciclone. Os corpos continuaram a chegar a terra, a serem velados e enterrados nos dias seguintes.
Neste jornal, dava-se destaque aos esforços de salvamento. Um dos nomes mais referidos era o do “herói exemplar” Pedro Ferreira Cavaco: “Se recebesse uma medalha por cada alma que salvou, teria agora o peito coberto delas”.
A sua filha, Graciete Cavaco, recorda a gratidão com que os seus conterrâneos agradeceram ao pai ao longo da vida. Como era atleta e nadador, campeão de vela, o seu pai já tinha salvado outras pessoas de afogamentos no Tejo. Mas, no dia do ciclone, eram centenas de pessoas a precisar de apoio.
Pedro Cavaco andou de mouchão em mouchão e foi resgatando quem ainda estava vivo. Assim que chegava, perguntava-lhes se havia mortes; respondiam-lhe que estava “quase tudo morto”.
O seu nome foi dado em jeito de homenagem ao passeio ribeirinho de Alhandra, perto do cais onde deixou os companheiros naquele dia — vivos ou mortos. Uma das histórias que mais contava a Graciete era a de uma mulher que estava junto ao cais, insistentemente à espera de notícias sobre o marido e a filha, que estavam num dos mouchões. De cada vez que Pedro Cavaco vinha a terra deixar sobreviventes, a mulher perguntava quando é que lhe trazia a família. E, a cada vez, Pedro Cavaco respondia: “Primeiro de tudo deixa-me salvar os vivos...” A mulher ali permaneceu, esperançosa. Só quando chegaram os corpos percebeu o significado das suas palavras.
Como será no futuro?
Uns anos mais tarde, Alhandra voltou a ver dezenas de mortes por causa das cheias de 1967. O fenómeno foi mais localizado na região de Lisboa e, a nível nacional, não houve tanta destruição como em 1941.
Ainda que as alterações climáticas não devam agravar as tempestades de vento, a prevenção é chave. Um temporal semelhante hoje pode ter consequências devastadoras, admite o meteorologista Paulo Pinto. “Não por ser pior, mas por termos mais gente e mais bens em circulação.”
No caso dos ciclones tropicais, já se sabe que estão a ficar mais intensos do que no passado por causa das alterações climáticas, revela o cientista Filipe Duarte Santos. Quanto às tempestades extratropicais — como esta de 1941 — “já é mais difícil dizer”. A precipitação vai ser cada vez mais intensa. “É muito importante que, tanto nas grandes cidades como nas pequenas povoações, haja formas de adaptação a uma maior frequência e intensidade dos eventos meteorológicos extremos”, remata o professor universitário.
A gestão do território é igualmente essencial. “Esta variabilidade climática tem aumentado o número de eventos meteorológicos extremos, mas depois os impactos que têm no território estão amplificados pelas más opções em termos de ordenamento”, considera a geógrafa Adélia Nunes. Este é um fenómeno que pode acontecer a qualquer altura, diz. “Se se voltar a manifestar um evento com as mesmas características, os impactos serão muito mais intensos.”
Além disso, “o nosso nível de protecção e preparação não é muito grande”, repara José Luís Zêzere, coordenador da base de dados Disaster, que confirma que esta foi uma das tempestades mais agressivas dos últimos 150 anos. “Estamos a falar de eventos que mataram pessoas, que provavelmente no futuro se repetirão, e a verdade é que não estão estudados”, avisa Zêzere.
Os modelos climáticos são inconclusivos em relação à variável do vento, diz José Luís Zêzere, mas tal não significa que não devamos estar atentos. E conclui: “Não podemos dizer que vai ser pior — mas não temos nenhuma razão para pensar que vai ser melhor.”
Certo é que as marcas deixadas por estes fenómenos extremos são pesadas e só vão desaparecendo com o esvair das memórias. Não fosse a neve e o homem que quis ir a um julgamento e talvez Rosária tivesse crescido com o pai. Talvez tivesse construído recordações felizes a seu lado.
Apesar de ter sido criada uma Comissão de Apoio às Vítimas do Ciclone e de se ter esmiuçado a ajuda prestada aos familiares afectados pelo “terrível ciclone” nos debates parlamentares, Rosária diz que não houve qualquer apoio vindo de fora. “Nunca ninguém veio cá.” Com os anos, a memória começa a ficar mais difusa. “E tudo se passou...”