Carlos Moedas: imigrantes em Portugal só “se tiverem contrato de trabalho”
Autarca de Lisboa desafia Governo a recuperar contingentes de imigrantes e critica a criação do visto que permite a entrada de estrangeiros no país durante seis meses para procurarem trabalho.
Carlos Moedas defende a imposição de contingentes para os imigrantes que querem instalar-se em Portugal, como forma de prevenir as degradantes condições em que muitos vivem no eixo da Avenida Almirante Reis, no centro de Lisboa, como as dos moradores do prédio da Mouraria que ardeu no fim-de-semana.
Em entrevista no programa Hora da Verdade, do PÚBLICO e da Renascença, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa (CML) deixa ainda críticas ao Governo, que diz estar “desgastado”, e elogia o líder do seu partido, Luís Montenegro, por andar no terreno a “ouvir as pessoas”. Sobre possíveis acordos com o Chega para um futuro Governo de direita, puxa do seu próprio exemplo: ganhou a Câmara de Lisboa com uma coligação que não incluía o partido de André Ventura. E remete para o líder social-democrata uma posição mais clara sobre o assunto. “Tem de marcar uma entrevista com o líder do PSD e ele dirá.”
Na madrugada de domingo, houve mais um incêndio no eixo da Avenida Almirante Reis, zona onde vivem muitos imigrantes em condições de extrema precariedade. Quantas situações semelhantes tem a CML sinalizadas e o que é que tem feito para salvaguardar a segurança destas pessoas?
Mais ou menos da Praça do Chile para baixo, até ao Martim Moniz, temos um problema gravíssimo de sobrelotação. É um problema que acontece também noutras cidades. Mas isso tem a ver com políticas de imigração. Temos uma lei de estrangeiros com mais de dez anos que previa, no seu tempo, que o próprio Estado olhasse todos os anos e visse qual era o contingente de pessoas que precisávamos.
Os refugiados devem ser sempre acolhidos. Para migrantes económicos, os países têm que ter políticas de imigração. Portugal precisa de imigrantes. Estamos a diminuir a população. Precisamos de mais pessoas, mas para isso temos que estabelecer contingentes daquilo que precisamos e essas pessoas têm que chegar com dignidade.
Está a falar de quotas?
De contingentes. De quantas pessoas é que precisamos na agricultura, na indústria, nos serviços? Isso deveria ser publicado todos os anos e nunca foi feito. Depois de publicar esses contingentes, as pessoas vêm para Portugal se tiverem um contrato de trabalho. Temos neste momento as pessoas a chegarem a Portugal sem promessa de trabalho. Aliás, há um novo visto, que não faz sentido nenhum, que é um visto para as pessoas chegarem e procurarem trabalho.
Isso abre um debate complicado, sobre quotas de imigração, muito apetecível para um lado do Parlamento...
É pena, porque não devíamos politizar este tema, porque estes contingentes existem na Alemanha, na Suécia, no Canadá. Carlos Moedas, político, acredita que precisamos de mais pessoas em Portugal. Agora temos de dar dignidade a essas pessoas. Não podem vir para Portugal sem terem condições nenhumas. As pessoas não podem vir para o nosso país sem terem um trabalho.
Temos pessoas que têm um arrendamento de uma casa e depois subarrendam a casa a 20 ou 30 pessoas. Isto é escandaloso. Este trabalho é feito com o Governo — eu estou a falar no Governo nesse sentido — e também com as juntas de freguesia, porque são elas que dão os atestados de residência. Quando uma junta verifica que uma casa tem cinco ou seis atestados de residência, alguma coisa está mal...
A câmara não pode intervir nesse processo?
A câmara não pode entrar na propriedade privada, a não ser que haja uma denúncia. Alguém pode fazer essa denúncia. Quando temos denúncias, actuamos.
Está a falar deste problema com o Governo? Já houve algum tipo de abertura da parte do ministro José Luís Carneiro?
Estamos a falar sobre vários temas. Isso é uma questão política. Eu não falei deste tema, estou aqui apenas a diagnosticar a situação e estou a dizer o que, como político, penso que está mal. Não podemos ter, como nenhum país tem, uma política em que as pessoas chegam e depois estão nesta precariedade.
Não podemos ter uma política em que recebemos as pessoas e depois elas estão ao abandono. Temos de ter uma política que acompanhe os imigrantes. Agora não podemos ter uma política em que qualquer pessoa entra no país sem ter qualquer vínculo. O meu discurso é totalmente a favor de imigração, no sentido de essa imigração ser um valor acrescentado para o país.
Além das questões que mencionou, a sobrelotação das casas leva-nos ao tema habitação. Por diversas ocasiões ouvimos a vereadora da Habitação, Filipa Roseta, dizer que o modelo escolhido pelo anterior executivo para envolver os privados na construção de habitação pública não funcionou. Que modelo é que o seu executivo propõe para haver mais habitação pública?
Estamos a fazer o maior investimento em habitação da cidade de Lisboa desde há décadas. É uma solução multifacetada, de construirmos habitação e aí temos uma ajuda europeia única, de quase 400 milhões de euros para habitação em Lisboa até 2026. Há mil casas em construção, graças ao dinheiro europeu. Depois temos dois mil fogos vazios nos bairros municipais. Neste momento conseguimos investir 40 milhões nos bairros municipais para requalificar estes fogos. E estamos a atribuí-los. Neste momento estamos a fazer 800 para poderem ser entregues.
Lançámos uma cooperativa no Lumiar. Queremos ter cinco cooperativas. É uma medida muito à esquerda olhar para um terreno e oferecer esse terreno para as pessoas poderem construir. Fica mais barato porque não pagam o terreno. No ano passado, ajudamos 1259 famílias, entre apoio à renda e atribuição de casas, que foi o mais alto desde há dez anos. É uma luta que é sempre difícil porque nunca será suficiente, mas estamos a fazer mais e vamos continuar.
Vai haver construção pública municipal nova em Lisboa até ao final do ano?
Estamos a construir mil fogos.
Mas são projectos que vinham do anterior executivo...
Uns são do anterior, outros são nossos. Outros serão futuros. As cooperativas fomos nós que trouxemos. Os projectos de que estamos aqui a falar de 400 milhões de dinheiro europeu somos nós que estamos a fazer.
O gabinete anticorrupção que a câmara criou recentemente vai servir para quê? Para evitar situações como as investigações que estão a decorrer neste momento em torno da Câmara de Lisboa, processos como o Tutti-Frutti?
Somos a primeira câmara no país com um departamento anticorrupção, de transparência. É um assunto que digo que é operacional na câmara. A corrupção só se pode combater através de processos claros. Criámos processos para que seja claro para um investigador aquilo que foi feito. Quais são os processos que temos que fazer a cada passo para que tudo seja transparente. Ainda neste caso da Jornada Mundial da Juventude, como é que foram os processos de consulta às empresas? O Departamento de Anticorrupção e da Transparência da câmara vai tratar exactamente de montar processos que não existiam para que isto seja totalmente claro.
Estamos a digitalizar todos os processos para que, quando entra um processo [de urbanismo] na câmara, essa pessoa possa ter acesso directo através de uma plataforma online para saber onde é que está esse processo. Aí também vamos mostrar as nossas próprias fraquezas quando não trabalharmos ou quando não fizermos o que devíamos. Mas vai ser transparente.
Nesse âmbito, foi criado um canal de denúncias. Quantas é que já recebeu?
Nós recebemos denúncias todos os dias e essas denúncias vêm pelo canal de denúncias, mas vêm também por carta. Todas elas são tratadas. Essas denúncias são reportadas ao Ministério Público.
Detectou alguma ilegalidade enquanto autarca nos mandatos anteriores que tenha enviado para o Ministério Público?
Não, não enviei nada ao Ministério Público. O que temos feito é internamente olhar para os processos.
O Ministério Público acusou o presidente da Junta de Freguesia de Alcântara de lesar a Santa Casa da Misericórdia. Davide Amado já se demitiu da liderança do PS-Lisboa. Deveria demitir-se também da presidência da junta?
Não farei nenhum comentário de algo que não tenho qualquer conhecimento. Só pela comunicação social. Só tive a informação de que o senhor presidente da junta se tinha demitido das suas funções políticas. Mas isso não é algo que eu possa tecer algum comentário como presidente.
Considera que mantém condições para continuar como presidente de junta, tendo uma acusação destas às costas?
Isso é uma avaliação que um eleito tem que fazer. Não é o presidente da câmara. Eu faço essa avaliação quando essas coisas dizem respeito à minha pessoa. Eu nunca fui arguido, nem nunca tive nenhuma acusação. Foi dito por mim muitas vezes que uma coisa é ser arguido — e muitos presidentes de câmara têm sido arguidos —, outra coisa é ser acusado. É obviamente mais grave ser acusado.
E deve levar a outro tipo de consequências?
Eu não conheço esta acusação, não sei exactamente o que é que está por trás. Apenas ouvi nos noticiários e portanto não sou eu que vou fazer uma avaliação de algo que está a decorrer na Justiça. O que digo é que estamos a chegar a um ponto na nossa política em Portugal em que este acumular de situações é muito grave para a democracia e para todos os partidos.
Há uma politização dos casos judiciais?
Eu não sei se há uma politização ou não, mas sei que são muitos. E sei que isso descredibiliza e tem um efeito terrível na democracia. São muitos casos. São casos que estão a ser investigados e, portanto, não sou eu que vou comentar. Mas penso que é triste para a política portuguesa vermos neste momento tantos casos, tantas situações que não deveriam acontecer.