Durante a minha infância apercebi-me bem das dificuldades que sentiam os meus pais na gestão de um pequeno restaurante que era o sustento da família: da inexistência de horários de trabalho à incerteza dos rendimentos no final do mês; tudo isto me fez perceber que queria para a minha vida uma carreira profissional com muito mais certezas do que aquela que os meus pais tinham.
Estudar era uma condição para essa vida melhor, e foi ao estudar na escola pública que, tanto eu como as minhas irmãs, criámos admiração e reconhecimento pelo trabalho dos nossos professores, bem como vários preconceitos sobre as regalias e privilégios que tinham, sem ter noção que eram, efectivamente, preconceitos. Talvez, por isso mesmo, os quatro irmãos optámos por abraçar uma vida como professores, rumo a uma carreira das 9h às 5h, com ordenado certo ao fim do mês, direito a fim-de-semana e uma vida regada de férias escolares! Porém, a carreira docente que sonhámos na função pública não passou efectivamente de um sonho.
Licenciado em Educação Musical, a minha carreira docente na escola pública começou da forma mais precária possível como professor nas Actividades de Enriquecimento Curricular (AEC). Aqui, apesar de trabalhar numa escola pública como professor de música, as aulas eram consideradas actividades e não aulas. Por isso mesmo, as “actividades” eram pagas à hora e a recibos verdes através de uma empresa subcontratada. Durante as férias escolares, não recebia ordenado porque não havia “actividades”, e os descontos para a Segurança Social ficavam a meu cargo. Rapidamente percebi que não podia continuar a ser professor naquelas condições, e teria de conseguir um contrato num dos concursos do Ministério da Educação.
Depois das AEC, consegui então um primeiro contrato com o Ministério da Educação de 8 horas lectivas semanais. A este, seguiu-se um outro contrato de um mês, que, afinal, iria durar o ano lectivo inteiro, apesar de várias vezes, ao longo do ano lectivo, receber um SMS do Ministério da Educação a indicar que o meu contrato de trabalho tinha terminado, e que deveria deixar a escola.
Trabalhar a recibos verdes, com horários incompletos ou com horários temporários sem saber quando acabavam, não era a vida que tinha sonhado como professor em termos de estabilidade financeira, emocional e profissional. Sem saber onde “assentar” para viver, tão pouco me podia envolver em projectos de escola ou criar vínculos de trabalho com os alunos ou colegas, porque toda a minha situação era sempre precária, temporária ou a tempo parcial.
Foi no ensino privado que encontrei a estabilidade de carreira que o ensino público nunca me deu: um contrato de trabalho sem termo, com horário completo e progressão de carreira. Ao invés de passar o mês de Agosto sem saber se iria ter trabalho em Setembro, aqui aprendi a usufruir de férias, conhecendo em Julho o meu horário para o ano lectivo seguinte. Ao invés de saltitar de escola em escola a “tapar buracos”, aqui pude desenvolver projectos plurianuais com o colégio e com os meus alunos. Ao invés de mal conhecer as escolas por onde passava, aqui criei um vínculo profissional e afectivo com o colégio, colegas, alunos e pais. Ao invés de arrendar um quarto a cada seis meses algures no país, aqui criei a estabilidade financeira que me permitiu comprar casa.
Além dos benefícios pessoais que um contrato sem termo trouxe à minha vida pessoal, essa estabilidade foi também vantajosa para o funcionamento do colégio e para os alunos, que tiveram as suas aprendizagens mais consistentes ao longo dos anos. No entanto, esta estabilidade que consegui no ensino privado foi vedada às minhas irmãs e aos meus colegas de curso que, por amor à camisola, continuaram a sujeitar-se a contratos precários, temporários ou incompletos no ensino público e que, nos dias de hoje, com mais de 40 anos, ainda continuam a percorrer o país de casa às costas, na esperança de um vínculo laboral com o Ministério da Educação.
Se, por um lado, a precariedade laboral que tem pautado a escola pública nas últimas décadas tem custos directos mais baixos, por outro lado, a longo prazo, promove uma escola pública de menor qualidade, não só na vida pessoal e laboral de todos os profissionais, como no funcionamento das próprias escolas, na qualidade dos serviços prestados, com reflexos nas aprendizagens dos alunos e, em última análise, com reflexos na qualidade da sociedade que formamos e construímos.
Urge, por isso, a necessidade de um entendimento histórico entre Ministério da Educação e sindicatos para rever por completo o modelo de contratação de professores e toda a sua progressão de carreira no ensino público, para que, tal como eu sonhei um dia, jovens vejam na carreira docente uma oportunidade para uma vida melhor, um caminho para um futuro melhor, não só pessoal como colectivo. Não fazer isso é colocar a escola pública em causa, com um custo social muito mais elevado do que os custos financeiros de fazer essa revisão laboral na actualidade.