Trocar o figueiral por mais olival intensivo? Mário Carrasco recusou e hoje temos figos divinos
Ao comprar um olival em Moura, Mário descobriu um hectare de figueiral. Sugeriram-lhe que o arrancasse, mas ele recusou e criou uma marca de figo em calda por variedades – a Courelas da Casinha.
Se há um fruto que nos tira do sério é o figo. Fresco, claro, mas também seco, em compota, em calda, no queijo de figo algarvio, na doçaria clássica e até destilado. A maluqueira é tal que acontece-nos parar o caro na beira da estrada para apanhar meia dúzia de figos de ramos que saem fora da propriedade onde está ancorada a figueira.
Uma planta que cresce de forma selvagem, destrambelhada, sem necessidade de cuidados e ainda assim estica-se para espalhar frutos por todos os ramos é porque tem no seu ADN o gene da generosidade. Aliás, de acordo com o bom uso da lei das estremas, os frutos das pernadas que caem para o quintal do vizinho pertencem-lhe (não são do dono da árvore), pelo que atacar uma figueira na via pública não viola nem os costumes, nem o catecismo.
Claro que uma pessoa, num mercado municipal, na altura deles, pode comprar um quilo de figos que não é por isso que fica pobre, mas escolhê-los numa figueira, com o cheiro da figueira ao pé, soprar-lhes o pó e devorá-los logo ali, com casca e tudo, é outra coisa. Neste Verão, em Tavira, apanharam-nos a mirar gulosamente os ramos de uma figueira no passeio. Dois minutos depois estávamos em casa da família proprietária da velha figueira a comer figos com pão e vinho caseiro. Um luxo. No regresso a Lisboa ainda trouxemos figos, uvas Moscatel, azeitonas bem curtidas, uma garrafa de aguardente de medronho e um bom punhado de histórias. O que faz uma figueira.
Também temos por hábito assaltar as figueiras Pingo de Mel de Abílio Tavares da Silva, na Quinta de Foz Torto, no Douro. E se aqui estamos protegidos pelas regras da amizade, estamos, por outro lado, expostos a riscos. É que o Abílio plantou figueiras em taludes com uma inclinação considerável (esperto). Se, com o desejo, um tipo se estica em demasia para aquele figo bonito que está na ponta do ramo a provocar um melro, corre o risco, por questões de gravidade, de vir a rebolar talude abaixo.
Seja como for, a Márcia Quaresma, mulher do Abílio, faz com os frutos uma calda de figos que é de chorar, e cuja receita lhe foi passada pela família Correia, da loja Xisto Azul (Pinhão). Só provando. A única chatice é que os seus afazeres médicos em Vila Real não lhe permitem aumentar a produção. É lamentável.
Enquanto actividade económica, a cultura do figo em Portugal é, para nós, um mistério. A planta cresce por todo o lado com a maior das facilidades, não sofre de maleitas e raramente pede a atenção do dono (de tempos a tempos uma poda, vá). Dá frutos que deixam bom dinheiro em fresco e não só, mas, vai-se a ver, a instalação de figueirais é, com excepção do que se passa no Algarve e Mirandela, uma raridade.
É por isso que Mário Carrasco e a família merecem a nossa atenção por terem lançado uma linha de figos em calda com duas variedades (Pingo de Mel e Rei Preto) e outra de compota com a variedade Figo de Princesa, tudo com a marca Courelas da Casinha. É extraordinário fazer o jogo de preferências em função das variedades. Os figos Pingo de Mel Courelas da Casinha parecem-nos sempre mais doces, mais finos e delicados. Já os Rei Preto, cuja calda é feita com açúcar mascavado, são mais rijos e de sabor intenso. Comidos só em si já são uma festa devido à doçura e às texturas firmes, mas quando fazemos experiências com queijos, presunto, terrinas de fígados, pães com frutos secos, sericaia, gelados, panquecas e aqueles magníficos pães-de-ló do Minho, é difícil de perceber qual é variedade que funciona melhor.
Na cozinha cá de casa temos uma folha colada num armário com os exercícios para as melhores ligações com as duas variedades de figo, sendo que uma delas mete uma aguardente muito leve e perfumada que está em preparação na Quinta da Alorna (é segredo) e outra inclui especiarias, mas andamos um tanto ou quanto baralhados. Isto de se olhar para uma coisa e imaginar outra é um vício diabólico.
Homem ligado à gestão de empresas de construção civil, Mário Carrasco, farto de saltar de crise em crise, abandonou este universo e comprou, em 2020, uma herdade de 27 hectares em Moura, com um olival intensivo. A compra é capaz de ter sido decidida mais a partir de Google Earth, folhas Excel e reuniões em família do que do namoro à terra propriamente dito.
Isto porque foi só numa visita à propriedade - e já com a escritura feita - que Mário se apercebeu que havia outra cultura que não olival. No julgamento de um enteado, aquele hectare de figueiral, que não fazia parte do plano de negócios, era para arrancar. Para quê? Para meter mais oliveiras, pois então.
Mário não disse nem que sim nem que não, mas foi para casa fazer contas e, a dada altura, teve uma ideia que raramente entra no juízo dos agricultores portugueses que agora andam embevecidos pelas monoculturas intensivas de grandes dimensões: “E se eu criasse uma marca que acrescentasse valor aos figos? Ainda por cima, a família alentejana da minha mulher tem receituário antigo de figo em calda. E se eu apresentasse no mercado uma compota de Figo de Princesa? E se eu?...”
E foi assim que, depois de alguns investimentos básicos em poda e outros mais onerosos na colocação de uma rede para impedir o banquete dos pássaros que Mário e a família começaram a testar a tal receita familiar. Em 2021, de forma tímida, em 2022, de forma intensa, de maneira que agora podemos matar o vício de figos no Inverno e na Primavera, enquanto as figueiras se cuidam para o Verão.
Agora, querem perceber por que razão temos dificuldade em acompanhar a mentalidade de muitos agricultores e, neste caso, o fraco interesse pela cultura do figo em Portugal? A partir de 25 hectares de olival intensivo, Mário Carrasco obterá, com a venda da azeitona, um lucro à volta dos 25 mil euros nesta campanha (campanha fraca, é certo), mas a partir de um hectare de figueiral vai tirar, com a marca Courelas da Casinha, 16 mil euros. Dá que pensar, não dá?