Quando o patrão é uma plataforma…
Os silêncios ou a passividade do Governo e das entidades fiscalizadoras só podem ser entendidas como cumplicidade e conivência com a continuidade das práticas laborais das plataformas digitais.
O José é estafeta. Trabalha de bicicleta, percorrendo uma média de 40km por dia, seis dias por semana. Trabalha entre dez e 12 horas diárias, alguns dias ganha 30-35 euros e outros menos de dez euros, trabalhando o mesmo número de horas. A empresa para a qual o José trabalha atrasa-se muitas vezes a fazer o pagamento a trabalhadores como ele e a sua continuidade neste trabalho, bem como o valor que recebe por cada uma das entregas, depende da avaliação que, através de um clique, um cliente da plataforma pode fazer e de algoritmos que não conhece nem consegue controlar. Muitas vezes, as razões para uma má avaliação ou insatisfação não dependem de quem, como o José, apenas faz a entrega.
Apesar das precárias condições em que trabalha o José, se, por alguma razão, ficar doente, não tem direito à protecção na doença; se tiver um acidente de trabalho e não tiver adquirido um seguro pessoal, não tem qualquer apoio; se for pai, não tem direito à protecção na parentalidade, não podendo gozar de dias remunerados para estar com a sua família; se o José desejar tirar férias, pode fazê-lo, mas sabe que serão dias em que não trabalha e que, portanto, também não recebe.
O José é trabalhador da Ubereats, mas podia igualmente ser da Glovo, da Bolt ou de outra plataforma. A sua realidade é a mesma da de outros tantos Josés que trabalham para as ditas plataformas digitais. Como estafetas, motoristas, e cada vez mais outras profissões.
E se agora eu disser ao leitor que estas práticas são sancionadas pelo Código do Trabalho? Se disser que a nossa lei considera o José e todos os outros como trabalhadores por conta de outrem, com direito a serem protegidos na parentalidade, na doença, com direito a férias pagas e a subsídios de férias e de Natal?
Perante esta realidade, quer da degradante e precária situação em que vivem estes trabalhadores, quer da existência de leis que os protegem, assim sejam aplicadas, os silêncios ou a passividade do Governo e das entidades fiscalizadoras só podem ser entendidas como cumplicidade e conivência com a continuidade destas práticas laborais, sem o reconhecimento do vínculo de trabalho permanente destes trabalhadores à empresa gestora da plataforma digital. E, claro, não promover alterações na lei que, independentemente das justificações, criem equívocos ou fragilizem de alguma forma os direitos destes trabalhadores.
Vale a pena recordar os chamados Uber Files que expõem a promiscuidade entre o poder económico e o poder político, no que diz respeito às plataformas digitais. As informações que vieram a público em Julho de 2022 mostram a “influência” exercida pela empresa multinacional de plataforma Uber junto de uma série de responsáveis governamentais dos Estados-membros e das instituições da União Europeia (UE), processo que ainda não foi clarificado.
Mais do que a Directiva relativa à melhoria das condições de trabalho nas plataformas digitais, que está em negociação nas instituições da UE, o que importa é a aplicação das leis nacionais e a salvaguarda da protecção dos trabalhadores, impedindo a precariedade que caracteriza o sector. Em vários países, há situações de condenação das plataformas face aos atropelos às leis laborais nacionais e há exemplos da protecção dos trabalhadores enquadrando-os como trabalhadores por conta de outrem.
Esta Directiva será inconsequente se não houver vontade política e os governos dos diferentes países não disponibilizarem os meios, assegurando as condições para fiscalizar e fazer cumprir a lei e para os trabalhadores fazerem valer os seus direitos. E se a desregulação, liberalização e precariedade continuarem a ser promovidas por políticas no âmbito da UE que encaram as novas tecnologias como uma renovada e “moderna “oportunidade para o aumento da exploração, a acumulação de lucros por parte das multinacionais, a destruição de direitos dos trabalhadores e a imposição de retrocessos civilizacionais.