Médicos defendem autodeclaração do utente, em vez da emissão de baixas pelo SNS 24

Grupo parlamentar do PS vai propor uma alteração à lei para que linha SNS 24 possa emitir justificação de faltas por doença até três dias. Caso seja aprovada, a medida entra em vigor a 3 de Abril.

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Grupo parlamentar do PS vai propor uma alteração à lei para que linha SNS 24 possa emitir justificação de faltas por doença até três dias Paulo Pimenta

Os médicos não concordam com a possibilidade de a linha SNS 24 passar a emitir baixas de curta duração tal como será proposto pelo grupo parlamentar do PS, defendendo, em alternativa, uma declaração do próprio utente sob compromisso de honra para se ausentar do trabalho por doença.

Miguel Guimarães, bastonário da Ordem dos Médicos, começa por destacar ao PÚBLICO que não poderão ser emitidas baixas médicas pelo SNS 24, uma vez que esta linha “não tem médicos”. “A avaliação do estado de saúde ou doença de uma pessoa é um acto médico”, afirma, fazendo notar que, se esta medida fosse aplicada, a linha SNS 24 “teria de contratar mais gente e, sobretudo, contratar médicos”.

O bastonário salienta que, em 2017, propôs que “as chamadas ‘baixas por doença de curta duração’ — a ausência ao trabalho até três dias — fossem de declaração pela própria pessoa” sob compromisso de honra, tal como acontece em vários países europeus, nomeadamente na Áustria e Alemanha. “A própria pessoa assume a responsabilidade de justificar que não foi trabalhar um, dois ou três dias, porque esteve doente. Isto é o que deve acontecer”, refere, destacando que esta proposta serviria para “simplificar os processos” e proteger “as pessoas, as empresas e o próprio serviço de saúde”.

O presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública (ANMSP), Gustavo Tato Borges, concorda com a responsabilização do utente, temendo que o modelo proposto pelo PS represente uma pressão acrescida sobre os médicos.

Gustavo Tato Borges destaca o facto de o SNS 24 ser “uma linha de triagem e encaminhamento dos utentes, de esclarecimento de dúvidas de saúde e de apoio a situações de saúde e doença do utente e não uma linha para emitir declarações e para trabalhos burocráticos”.

Além disso, sublinha que esta linha “tem apenas a operar profissionais de enfermagem que nas suas competências técnicas não têm definida a capacidade ou a possibilidade de certificar situações de incapacidade por doença”, somando-se a questão de o profissional de saúde que está do outro lado ter de “acreditar naquilo que são as comunicações do próprio utente, porque não tem capacidade para fazer uma avaliação física”. “Estamos a passar a validação de uma autodeclaração para um profissional que não está a ver o utente em causa e isto levanta questões.”

O presidente da ANMSP traça um cenário em que um utente pretende uma prorrogação da baixa além dos três dias, mas o médico de família considera que a pessoa tem condições para ir trabalhar: “O utente vai dizer que a linha SNS 24 validou o seu estado de doença e que, portanto, o médico de família deverá continuar este trabalho de justificação deste absentismo laboral.” Isto poderá colocar uma pressão acrescida sobre os médicos que, em determinadas situações, “vão ser confrontados na mesma com a necessidade de atender estes utentes e resolver estes problemas”.

Protecção para os utentes e as empresas

A solução “ideal”, diz Tato Borges, passaria por analisar e fazer alterações ao Código do Trabalho, para que o utente pudesse ter direito a um número previamente definido de dias por ano de “ausência laboral justificada por autodeclaração do doente”. “O utente sabia perfeitamente que durante aqueles períodos que já estavam definidos poderia não ir trabalhar, mas também não receberia remuneração e ninguém quer faltar ao trabalho sem ter a sua justificação e ficar sem receber”, acrescenta.

O bastonário da Ordem dos Médicos também destaca que para proteger, de alguma forma, as empresas, será necessário “fazer algumas alterações em termos daquilo que é o código e as relações de trabalho”, o que poderá implicar algumas “limitações” tal como acontece noutros países.

“Não é só uma questão de receber ou não receber, é uma questão também de nós conseguirmos ter estabilidade no trabalho e para as empresas isto é muito importante. Se eu tiver uma pessoa que todas as semanas falta um dia, por exemplo, é complicado e tem de haver regras”, afirma Miguel Guimarães. Estas podem ser limitações de uma determinada quantidade de dias ou de declarações, pelo que é essencial perceber como é que tal medida foi aplicada nos outros países, quais os resultados e depois decidir “aquilo que é mais adaptável” para Portugal.

A declaração poderia, por exemplo, ser entregue pelo cidadão “por via digital directamente para o local de trabalho” e Miguel Guimarães acredita que tal não iria aumentar o número de ausências ao trabalho por doença. “Vamos verificar que, depois de implementarem este tipo de processos, isto não vai acontecer mais vezes do que já acontece e, se calhar, até vai acontecer menos” devido à responsabilização do cidadão, afirma.

Quanto ao argumento de que a linha SNS 24 já emitia declarações deste género na altura da pandemia de covid-19, o bastonário explica que “não se pode confundir aquilo que foi a tentativa de contenção da doença SARS-CoV-2 com o tempo normal”.

Gustavo Tato Borges acrescenta que a linha SNS 24 “fez esse trabalho bem feito numa altura de excepção, porque havia uma necessidade tremenda de atender as pessoas”. Contudo, também houve vezes em que esta solução causou “situações muito complicadas” ao determinar que uma pessoa tinha de ficar em isolamento, quando não havia “critérios” que o justificassem.

Embora admita que, face ao modelo actual, “passar esta competência para a linha SNS 24 é uma vantagem para o utente”, permitindo uma simplificação do processo e uma “desburocratização dos cuidados de saúde primários”, o presidente da ANMSP alerta que o tema exige “uma análise muito criteriosa”, nomeadamente no que diz respeito ao número de dias ideal. Se para algumas pessoas dois períodos de três dias para se ausentarem do trabalho por doença anualmente poderá ser “pouco”, para outras será “suficiente”. É, por isso, uma avaliação que terá de ser feita pelos profissionais de saúde, entidades patronais e pelo próprio Governo, de forma a não permitir “abusos”, nem o oposto. “Tem de haver um equilíbrio.”

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