A desobediência como dever?
(Advertência ao leitor: qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência)
O Estado de direito é pouco amigo da desobediência. Desobedecer rompe com o edifício normativo e semeia incerteza. O “cidadão médio” (essa abstração) detesta incertezas. E se a desobediência ultrapassar os muros da legalidade, a legalidade é amputada. Andaremos perto da anomia. Mas o Estado de direito não pode ser um vigilante cego das suas muralhas, insensível aos efeitos adversos dos atores políticos na comunidade.
O Estado de direito admite o estado de exceção nas condições muito exigentes em que as autoridades aprovam a suspensão, ou a limitação, de direitos e garantias do Estado de direito. Os direitos cívicos cerceados durante a pandemia são o exemplo mais recente. Do mesmo modo, o Estado de direito contempla a hipótese do direito à desobediência. É uma hipótese mais controversa, em que a subjetividade de avaliação dificulta a legitimidade da desobediência.
Quando as instituições entram em falência e não exercem as suas competências de forma competente, os danos vertem-se sobre todos. Mas nem todos, a começar pelos titulares das instituições, reconhecem a paralisação das instituições e, ato contínuo, a sua incapacidade para lidarem com os problemas da comunidade. Os interesses instalados, que preferem o estado das coisas como estão (malgré tout); os pequenos jogos que se jogam entre forças e atores políticos, em que o acessório (a conservação do, ou a ascensão ao, poder) é tomado como o principal; ou a miopia, com a armadura da teimosia, que trava a lucidez sobre o “desestado” das coisas – todos estes fatores evisceram o direito à desobediência. São fatores trespassados pela subjetividade, tanta quanta a dos que se propõem instalar a desobediência. São subjetivas por igual.
A subjetividade torna-se uma bomba relógio, liquidando a legitimidade do direito à desobediência. As aferições podem ser contaminadas pelo viés da análise. Os que preferem o statu quo dirão que as anomalias são meros acidentes de percurso, não pondo as instituições em causa nem hipotecando o presente e o futuro da coletividade. Será sempre difícil, a quem gravita na órbita do poder, admitir que o poder caiu de podre. Enquanto existir, o poder nunca é podre (ainda que seja um podre). Os danos são matéria de contínua relativização e os seus efeitos medem-se por defeito crónico.
Do outro lado situam-se os insatisfeitos com o “desestado” em que as coisas estão. Poderão não saber resistir ao desejo de defenestração do desgoverno. Poderão exagerar no diagnóstico. Exagerando no diagnóstico, exorbitam na prescrição. Não terão lucidez para medir os efeitos instalados após o caos para resolver o que reputam como caos. Não pressentem remédio se as instituições continuarem disfuncionais. Os primeiros exaltam o deserto destrutivo se os titulares das instituições forem apeados. Os segundos tentarão demonstrar que, pese embora a incerteza como legado perene, nada pior haverá do que o poder conservado pelos seus atuais titulares. Mesmo que não consigam atestar o que se segue.
Parta-se de uma hipótese: se eu ajuizar o estado irremediável das instituições por inépcia dos seus titulares, ponho em causa as instituições ou mobilizo-me para afastar os titulares? Posso estar dominado por um absoluto estado de descrença nas instituições, impermeável à mediocridade dos atores políticos inscritos nas listas de habilitação para a função (ou até dos promitentes, em sabática, à espera de uma oportunidade para ressurgirem). Posso antecipar que a substituição de uns por outros, na simples lógica da alternância, não mudará a natureza das instituições nem será remédio para os problemas que continuam a atrasar a comunidade. Devo ativar o direito de desobediência, tornando-o um dever? Como manifesto esse dever?
A espessura da distância entre os pronunciamentos teóricos e a prática possível fragiliza a teoria. Se considerar que devo ativar o dever à desobediência, como procedo? Deixo de pagar impostos? (Uma impossibilidade quase total: o mecanismo de cobrança de impostos limita fortemente a possibilidade de rebeldia fiscal.) Deixo de responder aos comandos normativos, caindo em repetidas ilegalidades? Sujeitar-me-ei a uma espiral de multas e condenações? Ver-me-ei privado de liberdade por uma temporada na prisão? Estarei disposto a ser fugitivo das leis, vivendo em sobressalto, num nomadismo voluntário? Não aceitarei a legitimidade dos tribunais? Tornar-me-ei pária?
Ou então, os moderados, situados algures entre os dois lados da barricada, intervêm como mediadores. São os artífices da moderação como critério de aproximação. Tentando provar que o íngreme desfiladeiro da desobediência pode resolver um problema sem resolver os problemas. Convocando um levantamento pacífico, convidando os insatisfeitos a mapearem o profundo descontentamento em públicas manifestações, públicos pronunciamentos, sem se tornarem párias. Até que, sob ameaça da desobediência, em sucessivos protestos que denunciam o “desestado” das coisas, medre uma solução – uma solução qualquer, em que os titulares do poder e os que participam na normalidade estabelecida se sintam acossados.
Os moderados assim perfilados distinguir-se-ão pelo otimismo. Esse otimismo é a diferença entre a renúncia ao caos normalizado, arbitrada pela desobediência, e a manutenção de um coma, com prescrição generalizada de anestésicos. Conserve-se o direito à desobediência como uma arma importante no arsenal da cidadania. Para que os regentes, convertidos em problema sem remédio, e os com eles complacentes, se amedrontem com a possibilidade de desobediência. Para que, enfim, capitulem, cônscios que o direito à desobediência pode-se transfigurar num (para eles) pesadelo: o dever de recorrer à desobediência quando o “desestado” de tudo isto é irreparável se e enquanto os titulares das instituições continuarem a malbaratar o poder.
O direito à desobediência é ativado para estorvar o amanhã sem moeda própria. Protestar contra o “desestado” das coisas já é uma manifestação de desobediência, bolçada, e com provocação, sobre os que insistem em ver o nanismo disfarçado de grandeza.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico