Os maus-tratos a animais não podem ficar à margem da lei
A Constituição não tem de elencar todos os tipos de crime. Não o faz com o branqueamento de capitais ou o lenocínio, e não subsistem dúvidas de que tais práticas configuram crimes.
Em 2014, pelo impulso de uma petição, Portugal juntou-se aos países que criminalizam os maus-tratos e o abandono de animais de companhia. Ao longo dos anos a sociedade civil tem clamado pelo alargamento da tutela penal aos demais animais dotados de sensibilidade, mas também por uma efetiva aplicação da lei. Contudo, só em 2018 assistimos à primeira condenação em pena de prisão quando a cadela Pantufa foi esventrada a sangue frio pelo seu detentor e a quem foram retiradas as crias ainda vivas e deixadas a morrer no lixo. Na sentença proferida, o magistrado que julgou o caso dizia: "Não sou fundamentalista dos animais. Sou fundamentalista contra a crueldade (...). Se a cadeia não serve para a crueldade, serve para quê?”
Ironicamente, foi este mesmo caso que veio a originar a primeira declaração de inconstitucionalidade por parte da 3.ª secção do Tribunal Constitucional (TC). De lá para cá, temos assistido igualmente a casos de extrema violência contra animais, que, tendo sido condenados em tribunal, também foram objeto de recurso.
Em que país se concebe que maltratar um animal seja conforme à Constituição? Em que país é conforme à lei termos casos de animais espancados com barras de ferro, cadelas enforcadas porque engravidaram, animais esquartejados em contexto de violência doméstica, animais deixados a morrer à fome, animais presos a carros e arrastados pela estrada? Os casos são muitos e envolvem animais como aqueles que mais de metade de nós, portugueses, temos em nossas casas e que tanto estimamos. Segundo os relatórios de segurança interna, desde 2014 registaram-se 12.704 participações de crimes contra animais, 1814 por ano. Cifras negras que, quanto muito, pecam por defeito.
A posição do TC é no nosso entender uma leitura pouco atualista da Constituição e está em contraciclo com os valores de uma sociedade do século XXI, estando a gerar incompreensão e contestação – mais de 70 mil pessoas subscreveram uma petição em defesa dos direitos dos animais em apenas 15 dias! Sucede que, com esta tomada de posição do TC, os crimes que venham a ser praticados contra animais podem ficar à margem da lei e quanto aos casos com condenação efetiva – poucos, infelizmente – podemos vir a assistir à devolução dos animais vítimas de maus tratos aos seus agressores e/ou ao eventual pedido de pagamento de indemnizações pelos agressores!
Está nas mãos do TC garantir que, em deliberação de plenário, é feita uma adequada ponderação dos valores tutelados pelo nosso ordenamento jurídico, como o estatuto jurídico próprio dos animais, das normas vigentes, incluindo do direito europeu, bem assim uma leitura da Constituição em sentido material. A Constituição não tem de reproduzir de forma taxativa e elencar ipsis verbis todos os tipos de crimes previstos – ou que venham a ser previstos. Não o faz – e bem – com crimes como o branqueamento de capitais, a interrupção de cerimónias fúnebres ou o lenocínio – e, não obstante, não subsistem dúvidas de que tais práticas configuram a prática de crime. Por conseguinte, o mesmo deve aplicar-se aos crimes contra animais.
Uma sociedade justa e solidária, assente no princípio da dignidade humana, não pode ignorar o sofrimento animal ou a violência contra estes praticada, sob pena de contradição com os próprios princípios constitucionalmente consagrados.
A gravidade e a violência impõem a existência de um quadro sancionatório que inclua a previsão da pena de prisão. Os animais não podem ficar à mercê de um processo de revisão constitucional, que apesar de constituir um pertinente avanço legislativo, bem sabemos que pode ser um processo longo, nem deve a Constituição constituir um travão à proteção dos animais, que, na sua vulnerabilidade, estão à mercê do respeito e compaixão humanos. Declarar a lei inconstitucional é condenar os animais à violência, sendo da maior justiça e urgência garantir a manutenção da lei que criminalizou os maus tratos a animais de companhia.
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico