Mar de professores invadiu Lisboa em protesto “histórico” na Educação
PSP calcula que tenham estado no protesto em Lisboa 30 a 40 mil docentes e outros profissionais, mas organizadores falam em mais de cem mil. Manifestantes ameaçam regressar já na semana que vem.
Uma das maiores manifestações de docentes dos últimos anos teve lugar neste sábado em Lisboa. A “marcha pela educação”, que contou também com outros trabalhadores das escolas, viu desfilar dezenas de milhares de pessoas vindas de norte a sul do país, mulheres na sua maioria, que durante cinco horas encheram as ruas entre o Marquês de Pombal e o Terreiro do Paço.
As mais recentes declarações do ministro da Educação, que lançou suspeitas de ilegalidade sobre as greves levadas a cabo nos últimos tempos, contribuíram para acirrar os ânimos: João Costa está a ser acusado de tentar manipular a opinião pública e pediu-se a sua demissão. A PSP estima que tenham participado no protesto entre 30 e 40 mil pessoas, embora os organizadores – o Sindicato de Todos os Profissionais da Educação (Stop), que classificou o protesto de "histórico" – falassem em mais de cem mil, o dobro do que esperavam inicialmente.
“Somos pessoas de bem. Até agora ainda não fiz dia nenhum de greve”, admitia Ana Teresa Carneiro, que, com os colegas do Agrupamento de Escolas D. Dinis, vindos de Santo Tirso, ajudou a encher um autocarro. “Mas depois das declarações que ontem [sexta-feira] fez o ministro... Se for preciso fazer ,não tenho medo, depois do que o ouvi dizer.” O problema, assinalou, é ter de preparar os alunos para os exames. “Mas depois do que o ministro disse...” Nem Ana Teresa Carneiro, nem as colegas são sindicalizadas. Uma delas, precária há duas décadas, já foi sócia de um dos sindicatos da Fenprof. Desistiu: “Desvinculei-me, não davam resposta aos meus problemas.”
Neste agrupamento, explicou o docente que liderava o grupo, Renato Moreira, a associação de pais tem-se solidarizado com o protesto a que muitos docentes já aderiram, ao ponto de partilhar no Facebook os cartazes que os docentes têm afixado na escola, e que mudam todos os dias, a explicarem as razões do seu descontentamento.
Antes de a marcha arrancar do Marquês de Pombal ainda houve tempo de os manifestantes ouvirem o que tinha para lhes dizer a professora do ensino superior e comentadora Raquel Varela. Num discurso contra o facilitismo no ensino, a investigadora mostrou-se solidária com o protesto: “É assim que se devem fazer as greves – não prejudicando os trabalhadores e prejudicando a sociedade.” Criticando o facto de ter havido autocarros de professores que foram interceptados temporariamente pelas autoridades no percurso a caminho de Lisboa, Raquel Varela acusou os sucessivos governos de terem “transformado a escola num depósito onde não se ensina nada às crianças” e de terem transformado as avaliações “numa fraude”. Para perguntar: “Onde é que está o conhecimento, que é a função essencial da escola?”
Para a docente, os seus colegas do ensino superior também deviam integrar as fileiras desta manifestação, para defenderem que os cursos voltem a ter cinco anos, em vez dos três impostos por Bolonha.
“Apesar de já estar num escalão superior, sinto-me roubada há muitos anos.” Professora de Educação e Moral Católica na Póvoa de Santo Adrião, em Odivelas, Teresa Martinho – que já não é sindicalizada – também não veio sozinha a esta manifestação. Os rabiscos na capa amarela com que vestiu Balu, um quatro patas de dois anos de idade, revelavam os sentimentos da docente: “Apoio a minha dona. Respeito pelos professores.”
Não veio protestar só por ela. Preocupa-a a situação dos colegas deslocados que consigo trabalham, a centenas de quilómetros das famílias. Indignam-na a falta de condições dos estabelecimentos de ensino e as tarefas em que têm de se desmultiplicar os funcionários das escolas para que o sistema se aguente a funcionar. Atrás de Teresa Martinho ouviam-se tambores, apitos, gritos, palavras de ordem, sons de uma multidão em luta. Quem passava aproveitava para cumprimentar Balu. “Não vamos ficar muito tempo, para ele não sofrer com o barulho”, despediu-se a professora de Moral.
Com caricaturas de António Costa e do ministro da Educação penduradas ao peito, Margarida Rosário desce a Rua do Ouro. Dá aulas ao primeiro ciclo numa escola de Guimarães e já não vê o dia de meter os papéis para a reforma, de terminar este sacrifício. “O quê, esperar até depois dos 66 anos?!”, dizia, enquanto apontava o dedo indicador à cabeça e descrevia círculos. “Já tive ataques de pânico, depressões...” Quando entrou para a carreira, não era assim, contou, mas agora os professores perderam o respeito dos pais e estão sujeitos a processos disciplinares “por tudo e por nada”.
“Somos tutores, mães, cuidadores... tudo e mais alguma coisa”, queixava-se esta mulher de 59 anos, enquanto caminhava ao lado da filha. “No primeiro dia em que fizemos greve na minha escola, a 17 de Dezembro passado, ameaçaram-nos no agrupamento de que nos podiam ter levantado um processo disciplinar.” O que fez nesse momento? “Eu nem piei. É o medo. Quem respondeu foi uma colega minha, com muita calma.”
Ainda chegou ao Terreiro do Paço a tempo de ouvir uma dirigente do Stop, a professora de História Carla Piedade, lamentar que os professores “embruteçam dentro das escolas por falta da formação a que têm direito”, mas que segundo a sindicalista lhes é negada, pelo menos em horários compatíveis com as suas vidas. A exercer em Pombal depois de ter percorrido o país de lés a lés em colocações precárias, deixou algumas sugestões ao primeiro-ministro sobre o que poderá fazer aos seis anos, seis meses e 23 dias que faltam na contagem do tempo de serviço dos docentes: “Pode tatuá-los nas costas ou bordá-los a ponto de cruz numa almofada.”
Mas foi quando se referiu às grelhas que os docentes têm de preencher no serviço que levou ao rubro a multidão que a escutava. “Sabem para que servem? Para nos manterem de cabeça baixa. Como o gado!” Já o dirigente do Stop, André Pestana, deixou um aviso em forma de palavra de ordem: “Desta vez ninguém nos engana – se Costa não recuar, voltamos para a semana.”
A marcha deste sábado foi o culminar de duas semanas de greves de professores e auxiliares operacionais que levaram ao encerramento de centenas de escolas por todo o país e deixaram milhares de alunos sem aulas. E segue-se a uma “ofensiva” do Ministério da Educação, que, nos últimos dias, na sequência de protestos dos pais, decidiu avançar com um processo para avaliar a legalidade deste protesto.
As greves que se iniciaram no início do 2.º período escolar, a 3 de Janeiro, foram convocadas pelo Stop e o Sindicato Independente de Professores e Educadores (SIPE).
O Stop alargou para todo o mês de Janeiro a greve por “tempo indeterminado” que se iniciou a 9 de Dezembro, com uma diferença de monta: na primeira fase os pré-avisos de greve abrangiam só os professores e, a partir de Janeiro, passaram a incluir também o pessoal não docente. Já o SIPE apenas “se estreou” em Janeiro, com uma greve ao primeiro tempo lectivo de cada docente que chegou ao fim nesta sexta-feira.
“O que está a acontecer é que num dia é numa hora, no outro dia é noutra. Em nosso entender, isto não respeita os princípios básicos do que é o desenvolvimento de uma greve”, acusou o ministro da Educação, João Costa, numa conferência de imprensa realizada nesta sexta-feira. “Leva a uma situação de imprevisibilidade para as famílias que suscita dúvidas de legalidade ao Ministério da Educação.”
Também a legalidade dos fundos de greve constituídos em várias escolas está a ser avaliada. Há professores nas escolas em greve a quotizar-se para financiar os assistentes operacionais, de modo a que se juntem à paralisação. Só a adesão destes profissionais garante que as escolas encerram de facto.
A onda de protestos em curso, a maior dos últimos anos, teve como ponto de partida um PowerPoint que o Ministério da Educação apresentou aos sindicatos de professores com os princípios que deveriam nortear um novo modelo de recrutamento de docentes, e que lançaram o alerta quanto à possibilidade de a tutela avançar para a municipalização do recrutamento dos professores.
Vinculação mais rápida?
Já este mês, no Parlamento, o ministro admitiu que esta proposta possa ter gerado apreensão entre professores e alguma “desinformação”. Isto aconteceu já depois de uma primeira manifestação convocada pelo Stop, para Dezembro, ter juntado mais de 20 mil professores em Lisboa. Uma adesão que o ministro começou por atribuir a uma “campanha de mentiras” lançada pelo coordenador daquele sindicato, André Pestana.
Os professores insistem que esta alegada mudança dos processos de recrutamento para os municípios, negada tanto por João Costa como pelo próprio primeiro-ministro, António Costa, foi a “gota de água” que os levou de novo à rua. E os docentes mantêm na agenda reivindicativa velhas questões que continuam por resolver, como a contagem de todo o tempo de serviço prestado durante o período de congelamento das carreiras e o fim das quotas para o acesso ao 5.º e 7.º escalões da carreira docente. Só este ano estas quotas levaram a que mais de metade dos professores que cumpriam os requisitos para a progressão ficasse de fora.
Nesta segunda-feira, as greves prosseguem. A convocada pelo Stop e outra série de paralisações distrito a distrito convocada pela Federação Nacional de Professores (Fenprof) e outros sete sindicatos independentes.
Falando na reunião da comissão nacional do PS, que decorreu também neste sábado, em Coimbra, o primeiro-ministro, António Costa, defendeu que é necessário encontrar para os professores contratados “o equivalente às regras que temos para a legislação geral do trabalho”, destacando que o tempo máximo do trabalho precário passou para dois anos.
“Quem está 15 anos como precário [como sucede com muitos docentes] não é um recurso eventual – é mesmo um recurso para uma necessidade permanente e essa necessidade permanente tem de se traduzir num contrato estável”, sublinhou António Costa, que classificou a precarização dos professores como “inaceitável”.