O que precisa de saber sobre a carne feita em laboratório
A carne cultivada tornou-se um dos debates do momento. E todos concordam que há muitas questões por responder. Eis o que sabemos sobre o presente e o possível futuro desta carne criada em laboratório.
Carne cultivada. Carne de cultura. Carne de laboratório. Carne de células. Como quer que se lhe chame, a mais recente novidade nas proteínas alternativas está a ficar cada vez mais popular. Nos últimos meses, a carne cultivada em laboratório passou o seu primeiro obstáculo com a Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, o acordo global para proteger a biodiversidade conseguido no final de 2022 na COP15, em Montreal, representa uma nova pressão para repensar a forma como a carne de vaca, porco, frango e marisco é produzida. Durante a COP27, o Governo de Singapura levou convidados VIP a um jantar com carne cultivada. O tema está na ordem do dia.
Os defensores da carne cultivada dizem que poderia ser uma resposta ao aumento das emissões agrícolas, à deterioração da biodiversidade e à alarmante insegurança alimentar, enquanto os críticos se preocupam com o elevado custo da carne cultivada, juntamente com os seus obstáculos regulamentares e a sua produção em escala não comprovada.
De um lado ou de outro, este tornou-se o debate do momento. E todos concordam que há muitas questões por responder. Por agora, eis o que sabemos sobre o presente e o potencial futuro da carne cultivada em laboratório.
O que é carne de cultura?
A carne cultivada ou de cultura é feita através da colheita de células de animais vivos. Depois, em laboratório, as células são "alimentadas" com nutrientes para que possam crescer num biorreactor e para que se possa transformar o resultado num produto que os consumidores possam comer.
Veja-se, por exemplo, a bexiga de peixe. A bexiga natatória [um órgão que auxilia os peixes ósseos a manterem-se a determinada profundidade] de um peixe é considerada uma iguaria em muitos países asiáticos.
Para criar uma versão cultivada em laboratório de bexigas de peixe de corvina, cientistas de Hong Kong da Avant Meats colocam células de peixe num meio de cultura que contém dezenas de nutrientes diferentes, e armazenam-nas num biorreactor ligado a um tanque de oxigénio. Em semanas, essas células proliferam em tecidos do tamanho de um grão de arroz, altura em que estão prontas para serem agrupadas em pedaços maiores.
A ciência por detrás da carne cultivada não é nova – as culturas celulares foram utilizadas pela primeira vez na investigação médica em 1907 –, mas a aplicação dessa ideia à carne ganhou força depois de um farmacologista holandês ter apresentado na televisão, em 2013, o primeiro hambúrguer in vitro baseado em células.
Actualmente, mais de cem empresas em todo o mundo estão a tentar criar proteína baseada em células, desde cordeiro a ostras de laboratório, e até foie gras de laboratório.
Diferentes proteínas apresentam diferentes desafios; no entanto, os fabricantes de frutos do mar à base de células não têm a vantagem que a investigação médica dá àqueles que cultivam células de mamíferos, por exemplo. E as carnes constituídas por tecido e texturas mais complexos podem ser mais difíceis de construir – um processo biológico complexo (chamado scaffolding) que mantém unidos músculo, gordura e tecido conjuntivo para recriar a estrutura da carne.
Em que é que a carne cultivada é diferente da carne à base de plantas?
Carne à base de plantas refere-se a carne que é feita de soja ou de outros ingredientes não derivados de carne – Impossible Foods e Beyond Meat são apenas duas de muitas empresas que produzem produtos de carne à base de plantas mais conhecidas.
A carne cultivada, por outro lado, é produzida através do cultivo directo de células animais. Tem exactamente a mesma nutrição que a carne de bovino, suíno, de aves e de marisco produzida convencionalmente – embora tanto a carne de origem vegetal como a de origem celular ainda estejam a aperfeiçoar o sabor e a textura.
A outra grande diferença entre as proteínas de origem vegetal e as de cultivo é a disponibilidade. A carne à base de plantas ainda está a lutar para atingir uma paridade de preços consistente com a carne normal – e comanda menos de 1% do mercado global, segundo uma estimativa do Good Food Institute Asia Pacific – mas é vendida em restaurantes e mercearias de todo o mundo.
Por enquanto, a venda comercial de carne cultivada em laboratório só é legal em Singapura, um país de cinco milhões de pessoas que está concentrado em reduzir drasticamente a sua dependência das importações de alimentos.
Porém, os especialistas dizem que é pouco provável que isso mude em breve. Evoluir a produção de proteínas cultivadas de uma fase piloto para um nível comercial requer avanços tecnológicos, dizem os observadores da indústria, e ainda não existem os biorreatores com as capacidades e dimensões necessárias para o fabrico em massa.
Os obstáculos regulamentares também permanecem. Nos EUA, a FDA disse recentemente à Upside Foods que não tinha dúvidas em relação à segurança do frango para consumo humano baseado em células da empresa. Mas o arranque da empresa na Califórnia ainda precisa de mais aprovações, incluindo do Departamento de Agricultura dos EUA, que em conjunto, supervisiona o lançamento de carne cultivada.
Noutros lugares, os responsáveis políticos na China, Israel e Países Baixos também já deram sinais de apoio à carne baseada em células, mas nenhum aprovou as vendas comerciais.
Os vegetarianos podem comer carne cultivada?
Tecnicamente, a carne cultivada não é vegana ou mesmo vegetariana: é feita a partir de células em crescimento retiradas de animais reais. Mas as pessoas tornam-se vegetarianas por diferentes razões, que vão desde as preocupações com os direitos dos animais até aos receios sobre o uso de antibióticos e hormonas no gado.
Muitos vegetarianos evitam a carne, num esforço para não esgotar os recursos ambientais. Em algumas destas frentes, a carne baseada em células pode ser uma alternativa viável: "Se acredita que tirar algo de um animal, incluindo uma célula, é uma acção invasiva, então não irá [comer carne cultivada]", afirma Sonalie Figueiras, fundadora do website de sustentabilidade Green Queen. "Mas se o seu foco estiver mais na redução do impacto global do sofrimento [animal], então provavelmente comê-la-ia.”
A proteína cultivada é melhor para o ambiente?
A carne baseada em células pode desempenhar um papel vital na ajuda à restauração da biodiversidade, há muito ameaçada pela agricultura tradicional. Considere-se, por exemplo, que a desflorestação de terras para a criação de gado é responsável por cerca de 80% da desflorestação na Amazónia.
Mas quando se trata do impacto climático das proteínas cultivadas, a resposta não é totalmente simples. O cultivo de carne de células em biorreactores utiliza muito menos terra do que a agricultura tradicional, e evita muitas das emissões associadas, por exemplo, aos arrotos de vaca. Também poderia permitir às empresas produzir carne mais perto dos seus consumidores, reduzindo a quantidade de combustível necessária para a distribuição de alimentos.
Mas o cultivo de carne em biorreactores exige também quantidades significativas de electricidade, particularmente em produções em grande escala. Isso torna a carne de porco e galinha cultivada uma opção viável para reduzir as emissões apenas se a sua produção for alimentada por energia eólica, solar e outras fontes de energia renovável, de acordo com um estudo de 2021 da consultoria ambiental holandesa CE Delft.
O mesmo estudo revela, por outro lado, que carne bovina baseada em células pode alcançar mais ganhos climáticos do que a produção tradicional, independentemente do tipo de energia utilizada para a produzir, porque a criação convencional de gado é muito mais intensiva no que se refere à exploração de recursos.
O que pode ser um problema na proteína cultivada?
A maioria das dúvidas sobre as proteínas cultivadas tem que ver com as suas limitações. Por enquanto, a sua produção continua a ser muito cara, o que torna as vendas generalizadas – mesmo com aprovação regulamentar – difíceis de imaginar a curto prazo.
De facto, quase uma década após a criação do primeiro hambúrguer in vitro cultivado do mundo a um custo fenomenal de 325 mil dólares (302 mil euros), a única carne cultivada comercialmente disponível é vendida em pequenas quantidades em Singapura e fabricada pela empresa Eat Just, com sede em São Francisco. A empresa diz que serão necessários oito anos para que os seus produtos se tornem competitivos em termos de custos com a carne convencional.
A transparência também tem sido um ponto de discórdia. Jaydee Hanson, director político da organização sem fins lucrativos Centro de Segurança Alimentar, de Washington, D.C., diz que os fabricantes de proteínas cultivadas raramente revelam como mantêm as células a crescer.
Isso pode por vezes expor processos problemáticos e levantar novas questões éticas, como por exemplo a utilização de sangue de vitelos por nascer como meio de cultura celular. Algumas empresas de proteínas cultivadas, no entanto, estão a fazer esforços para abandonar todos os materiais de produção de origem animal.
Depois há os desafios mais quotidianos mas igualmente importantes: aparência, textura e sabor. Numa noite de Novembro na Four Seasons em Sharm El-Sheikh, Egipto, uma dúzia de participantes no COP27 jantou uma coxa de frango grelhada com arroz de cogumelos, um prato feito com frango à base de células da Eat Just. A entrada foi recebida com opiniões distintas. "Tem o aspecto [de frango]", comentou um convidado. "Posso definitivamente dizer que não é frango", observou outro convidado. "É demasiado suave.”