Descoberta rede de proteínas que pode trazer uma solução para o fígado gordo
O fígado gordo não alcoólico afecta um em cada quatro portugueses. Cientistas nos Estados Unidos descobriram proteínas que podem ser atacadas por fármaco já existente.
Uma das características mais prevalentes dos casos de fígado gordo não alcoólico em fases avançadas é o desenvolvimento de fibroses (ou cicatrizes) que podem resultar em cirroses hepáticas. Apesar de continuar a ser um problema à procura de solução, a descoberta de uma rede de proteínas que desencadeia estas fibroses à medida que a doença avança pode vir a oferecer aos cientistas um novo alvo para futuros fármacos – pelo menos assim espera a equipa que descobriu esta rede.
“O nosso objectivo era compreender a base desta cicatrização e identificar alvos para fármacos que podem levar a novos tratamentos para o fígado gordo não alcoólico”, explica em comunicado Scott Friedman, investigador da Escola de Medicina Icahn no Hospital Mount Sinai (Estados Unidos), que liderou o estudo publicado na revista científica Science Translational Medicine.
E o objectivo foi cumprido, simplesmente ao olhar para ratos e tecidos de fígados humano com a doença, com a ajuda de técnicas de sequenciação genómica e de imagens microscópicas. A observação das principais células produtoras de cicatrizes no fígado, as células hepáticas estreladas (assim descritas pela sua forma de estrela), levou à descoberta desta intricada rede de células estreladas que comunicam entre si e facilitam a interacção entre 68 pares de receptores que nunca tinham sido identificados antes como peças essenciais para o fígado gordo.
Entre tantas parelhas nesta rede, há uma que se destaca: a dupla NTF3-NTRK3. Este par de receptores mostrou ser extremamente importante a fomentar as fibroses no fígado e os cientistas decidiram atacá-la. “Usámos uma molécula que já é utilizada para bloquear o receptor NTRK3 em cancro e aproveitámos para tornar esta molécula num fármaco com potencial para combater a fibrose do fígado gordo não alcoólico”, acrescenta Shuang Wang, outro dos cientistas que participaram na investigação e também da Escola de Medicina Icahn. E esta molécula já utilizada em ensaios clínicos contra o cancro colorrectal e da bexiga reduziu a presença de fibroses em ratos com fígado gordo avançado.
Um quarto dos portugueses tem a doença
Estima-se que entre 25% e 30% da população portuguesa tenha fígado gordo não alcoólico. Em todo o mundo, os valores de incidência desta doença silenciosa variam entre os 5% e os 40% – tornando-a um dos maiores desafios de saúde pública actuais.
A doença do fígado gordo não alcoólico caracteriza-se pelo excesso de gordura no fígado em pessoas que não bebem álcool ou que o fazem em pequenas quantidades, podendo levar ao aparecimento de problemas como a cirrose hepática ou o cancro no fígado. A equipa liderada por Scott Friedmann acrescenta mesmo que esta é a “causa de cancro que mais cresce em todo o mundo”.
Muitas vezes esta doença resulta do consumo elevado de açúcares e gorduras, conjuntamente com um estilo de vida sedentário, estando muito associada à obesidade.
Ainda assim, é importante notar que esta doença também afecta pessoas mais magras (com um índice de massa corporal inferior a 25), tendo inclusive piores prognósticos nesta população.
Há ainda uma outra preocupação comummente referida: as crianças. Paulo Oliveira, investigador do Centro de Neurociências e Biologia Celular da Universidade de Coimbra e coordenador de um projecto europeu dedicado à doença do fígado gordo não alcoólico, destacava ao PÚBLICO, em 2019, o aumento das crianças até aos 12 anos diagnosticadas com a doença: “O facto de cada vez mais crianças terem fígado gordo não alcoólico sugere que estamos na presença de uma bomba-relógio para a saúde pública.”
Voltar a testar a molécula
A investigação científica nesta área tem dado contributos importantes para a prevenção do fígado gordo e na forma como ela afecta o nosso corpo, mas o conhecimento sobre as fases mais adiantadas da doença continua a ser menor.
Esta nova investigação liderada pela Escola de Medicina Icahn acrescenta novos dados para estas fases mais avançadas da doença, nas quais a presença de fibroses no fígado é mais notória. A descoberta desta rede de proteínas que comunicam entre si reforça também a hipótese de que, nos últimos estágios do fígado gordo, o processo de cicatrização acelera – fruto da comunicação entre estes 68 receptores, ou pelo menos entre parte deles.
Apesar das dúvidas que persistem sobre o funcionamento deste mecanismo, que continuará a ser esmiuçado, os investigadores já começaram a trabalhar com especialistas em química da mesma universidade para optimizar os inibidores do receptor NTRK3 – o tal que funcionou em ratos – e realizar mais testes em modelos animais com fígado gordo não alcoólico, antes de poderem avançar para os ensaios em humanos (que ainda demorarão vários anos).