Bolsonarismo pode tornar-se “ainda mais subversivo e radicalizado”
A antropóloga Rosana Pinheiro-Machado diz que a democracia brasileira “passou pela maior prova de fogo das últimas décadas”.
Com vários anos de estudo sobre os fenómenos de radicalização política, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora na University College de Dublin, acredita que o bolsonarismo poderá diminuir após a invasão das sedes dos poderes em Brasília no domingo, mas quem permanecer envolvido será mais radical. Em entrevista ao PÚBLICO, antecipa “um problema gigantesco para os próximos anos”. Apesar de lamentar os acontecimentos, Pinheiro-Machado considera que a democracia brasileira “passou pela maior prova de fogo das últimas décadas”.
Com Jair Bolsonaro fora do país e Lula da Silva já como Presidente, o que pretendiam as pessoas que invadiram as sedes dos três poderes em Brasília?
Uma grande parte acredita na possibilidade de uma intervenção militar, porque um dos planos que circulavam muito nesses grupos [de WhatsApp] era a ideia de que uma intervenção militar poderia trazer Bolsonaro de volta e que a ida dele para os EUA era parte desse plano, segundo a fantasia destes grupos.
Como objectivo instrumental, a grande maioria acreditava na possibilidade de uma intervenção militar que obedecesse à ideia das ruas e que fosse contrária ao Governo actual. Há outros objectivos, como a própria ideia de êxtase revolucionário, de acreditarem que estão transformando a História, de que o povo está tomando o poder. Isso motiva essas pessoas, que conseguem [captar] atenção e tornar o movimento mais forte ainda. Acho que haverá uma punição muito forte, mas isso cria mártires: eles estavam esperando ser presos, estão na capa do New York Times. Existe todo um projecto de "martirização" e de conseguir algo excepcional. Eles conseguiram destruir os três poderes de uma maneira absolutamente fácil.
O bolsonarismo sai fortalecido com este tipo de acção?
Acho que há uma grande chance de isso se tornar ainda mais subversivo e radicalizado. Há duas possibilidades. Uma é a de que [o bolsonarismo] diminua em tamanho, porque muitas pessoas ficam com medo. A teoria do movimento social historicamente mostra que quanto mais repressão, maior o custo de se envolver num movimento. É uma questão matemática.
Por outro lado, quem continua, continua muito radicalizado e, com esse nível de organização, a radicalização sempre atrai mais gente. Eu acho que esse movimento se radicaliza. Toda a gente achava que ia ficar entre meia dúzia de loucos, mas não: é muita gente e muito mobilizada. É um problema gigantesco para os próximos anos. Eles não estão só quebrando o Congresso e bloqueando ruas, eles têm um ecossistema.
O objectivo de reverter a ordem constitucional não foi alcançado e houve um consenso das instituições na condenação da invasão. Em que estado fica a democracia brasileira depois de um ataque deste tipo?
Em termos de democracia institucional, fico contente ao ver que sai mais forte, que a eleição está sendo cumprida. Todas as instituições estão repudiando. A polícia agindo de uma forma leniente, mas agindo. Existe uma discussão muito ampla sobre até que ponto as polícias são coniventes com o bolsonarismo. Sabemos que existem sectores que são, mas estão a fazer o seu trabalho.
A democracia passou pela maior prova de fogo das últimas décadas e hoje o resultado é muito positivo. Passámos por algo semelhante em 1964 e o resultado não foi o mesmo. Mas temos esse movimento fascista que permanece e que corrói e não pode conviver numa sociedade democrática.
O que será preciso para que este sector social aceite o resultado das eleições?
É preciso punir os responsáveis e não tolerar nenhum tipo de acto terrorista ou golpista. É preciso mostrar para que é que as instituições democráticas existem e qual o limite do protesto. Mas isso em termos de coibir os movimentos.
Não há nada que se possa fazer no mundo para controlar essa onda fascista. Não temos ainda as respostas. Ela funciona de maneira muito descentralizada e ao mesmo tempo muito organizada, motiva, tem recursos. E para conter esse mundo paralelo são precisas décadas e um plano global, que passa pelo combate às desigualdades, regulamentação das redes sociais, punição de quem deve ser punido. Mas o problema é muito profundo porque existe um ecossistema do qual não estamos nem perto de decifrar.
Há muito que se fala da penetração do bolsonarismo nas forças policiais. O que vimos ontem foi uma demonstração disso ou simplesmente faltou capacidade operacional?
É muito difícil dizer, talvez haja um meio-termo. A leniência mostra que existe, no mínimo, uma conivência, uma simpatia. Até que ponto isso foi planeado, não sei dizer. O que importa é a leniência porque joga a favor da equipa terrorista, porque [a polícia] não actuou.