Levaríamos milhões de anos para recuperar animais extintos em Madagáscar
Qual foi o impacto da presença humana nos mamíferos de Madagásgar? Um estudo, que inclui um autor português, mostra que precisaríamos de milhões de anos para regressar à biodiversidade inicial.
Imaginemos um cenário terrível, mas que não é impossível, em que os mamíferos que hoje correm risco de extinção em Madagáscar acabam mesmo por desaparecer. Nesse panorama hipotético, esta ilha no Índico precisaria de 23 milhões de anos para regressar ao patamar de biodiversidade em que estava antes de os humanos lá chegarem. Esta é uma das conclusões de um estudo publicado, esta terça-feira, na revista científica Nature Communications.
“As pessoas ainda acham que ainda há sítios intocados no planeta, como Madagáscar, mas mesmo esses lugares longínquos e bem preservados podem, muito rapidamente, chegar a um ponto em que se perde a maioria das espécies. Não podemos subestimar o poder destrutivo dos humanos”, afirmou ao PÚBLICO o investigador português Luís Valente, co-autor do estudo e investigador do Centro de Biodiversidade Naturalis, em Leiden, na Holanda.
Madagáscar acolhe um conjunto rico e singular de formas de vida. Estima-se que mais de 3500 espécies vegetais e animais que habitam os 590 mil quilómetros quadrados da ilha estejam hoje ameaçadas, segundo a classificação da União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN, na sigla em inglês). O artigo científico procura estimar a perturbação causada pela presença humana na fauna local e perspectiva cenários futuros.
Os cientistas debruçaram-se sobre os dados relativos a 249 mamíferos terrestres vivos, incluindo o famoso lémure-de-cauda-anelada. A imagem deste primata tornou-se famosa por, entre outras coisas, ter inspirado a personagem do rei no filme animado Madagáscar. Foram considerados dados de mamíferos recentemente extintos e de espécies que desapareceram logo depois de os humanos chegarem à ilha – pelo menos 30 espécies ao todo, incluindo os lémures-gigantes e os hipopótamos-pigmeus-de-madagáscar.
“Os humanos chegaram a Madagáscar há cerca de 10 mil anos, mas a população inicial teve pouco impacto e desapareceu do registo arqueológico pouco depois. Há 2500 anos houve uma nova colonização que teve um impacto maior (e que dura até hoje). Por isso, costuma considerar-se que a ilha só foi realmente colonizada há 2500 anos”, explica o biólogo português radicado na Holanda.
A equipa combinou este conjunto de informação com a história evolutiva das espécies, assim como com modelos estatísticos que descrevem a distribuição geográfica dos animais ao longo do tempo. Este cruzamento de dados permitiu estimar que seriam necessários três milhões de anos para Madagáscar recuperar as espécies que já foram perdidas desde a chegada da espécie humana à ilha.
Tempo de retorno evolucionário
Para chegar a estes números, os investigadores recorreram ao cálculo do chamado “tempo de retorno evolucionário” (ERT, na sigla em inglês) de uma ilha. Esta métrica, refere o artigo, “estima o tempo que levaria para uma comunidade insular atingir uma dada diversidade de espécies” segundo um determinado modelo de macroevolução e certas taxas de colonização, especiação e extinção natural.
“Se nós quiséssemos voltar para o número de espécies que tínhamos quando chegámos, há cerca de 2500 anos, quanto demoraríamos para lá chegar? É um pouco isso o ERT. É o tempo que vamos demorar para regressar a um certo número de espécies, utilizando os processos evolutivos naturais. Se estas espécies fossem extintas, quanto tempo Madagáscar iria demorar, em termos da sua história, para as repor? ”, explica o biólogo evolucionário Luís Valente, que também é professor na Universidade de Groningen, na Holanda.
Luís Valente explica que se trata de um exercício “muito teórico”, mas com “muitas implicações para a área da conservação”. O ERT obtido nas diferentes ilhas fornece uma “fotografia” do estado de saúde da biodiversidade local. As conclusões do artigo sugerem que são urgentes medidas de conservação para travar a perda de espécies. As principais ameaças são a desflorestação, a caça de animais selvagens, as espécies invasoras e as alterações climáticas.
“Mostramos que a perda de espécies actualmente ameaçadas tem um impacto muito mais profundo a longo prazo do que todas as extinções desde a chegada dos humanos. Um retorno da diversidade actual à pré-humana levaria 1,6 milhões de anos para morcegos e 2,9 para mamíferos não voadores. No entanto, se as espécies actualmente classificadas como ameaçadas forem extintas, o ERT sobe para 2,9 milhões de anos para morcegos e 23 milhões de anos para mamíferos não voadores”, lê-se no artigo científico.
Só na última década o número de espécies de mamíferos ameaçadas na ilha mais do que duplicou, passando de 56 em 2010 para 128 em 2021. O estudo, que tem Nathan M. Michielsen como autor principal, sugere que “uma vaga de extinção com profundo impacto evolutivo está iminente em Madagáscar, a menos que sejam empreendidas acções imediatas de conservação”.
“A ideia deste artigo é sensibilizar. O nosso impacto é bastante grande, não só em termos de números de espécies, mas também em milhões de anos de evolução. É um alerta: ainda vamos a tempo de salvar estas espécies, mas temos de actuar agora”, avisa Luís Valente, numa videochamada com o PÚBLICO.
Melhorar a qualidade de vida da população
O cientista português explica que, para serem bem sucedidos, os programas de conservação têm de ajudar as comunidades locais. Este apoio socioeconómico teria como objectivo melhorar a qualidade de vida da população e proporcionar formas alternativas de sustento, desincentivando a caça de animais selvagens, a desflorestação para fins agrícolas e a exploração desregrada de recursos naturais para o comércio ou o artesanato.
“Está tudo interligado. Quando a população não tem comida e as colheitas falham, as pessoas recorrem cada vez mais à caça de animais selvagens e à desflorestação. Não há maneira de salvar as zonas protegidas de Madagáscar, se o nível de vida das pessoas não melhorar. A ilha tem muitas zonas que estão preservadas, mas a taxa de destruição está a ser alta, sobretudo com o cultivo de arroz e outros bens alimentares”, afirma o cientista português.
O trabalho desenvolvido contou com o apoio de uma organização local, a Associação Vahatra, da qual dois co-autores são membros: Steven M. Goodman e Voahangy Soarimalala. “Não fiz trabalho de campo para este artigo. Trabalhei em casa, durante a pandemia. Isto só foi possível, porque usamos os dados recolhidos ao longo de vários anos no terreno”, afirma o investigador Luís Valente.