Apesar das dúvidas, novo fármaco contra a doença de Alzheimer é autorizado nos EUA

Embora alguns médicos refiram que o medicamento para a Alzheimer pode trazer benefícios, notam que faltam dados sobre os seus efeitos para a aprovação. Empresa quer fazer o mesmo pedido na Europa.

Foto
Novo medicamento para a doença de Alzheimer é das farmacêuticas Eisai e Biogen Stephanie Forkel/NatBrainLab

A autoridade que regula os medicamentos nos Estados Unidos (a FDA) aprovou o fármaco lecanemab para a doença de Alzheimer, que foi desenvolvido pelas empresas Eisai e Biogen para doentes nas fases iniciais. Este é o segundo medicamento que tenta atrasar o declínio provocado pela Alzheimer a ser aprovado pela FDA. Alguns investigadores notam os possíveis benefícios deste medicamento, mas são cautelosos, devido às mortes que já terá causado e às lacunas nos dados em que a FDA se baseou para a aprovação.

O fármaco, que será vendido com o nome comercial Leqembi, pertence a uma classe de tratamentos que tem o objectivo de abrandar o avanço da doença neurodegenerativa ao remover placas de beta-amilóide do cérebro. Até agora, quase todos os outros fármacos experimentais anteriores que tinham usado a mesma abordagem para esta demência tinham falhado.

“Esta notícia [da aprovação] é incrivelmente importante”, assinalou Howard Fillit, responsável científico da Fundação da Descoberta de Fármacos contra a Alzheimer. “Os nossos anos de investigação desta que é a mais complexa doença humana que temos enfrentado deram frutos e dá-nos esperança de que podemos tornar a Alzheimer não apenas tratável, mas também evitável.”

A empresa Eisai diz que o fármaco poderá ser lançado a um preço anual de 24.690 euros (26.500 dólares). A Eisai e a Biogen também informaram que estão a planear pedir a autorização de comercialização para o Leqembi no Japão e na União Europeia até ao final de Março. Espera-se que a aprovação no Japão lhe seja atribuída até ao final deste ano.

A Eisai estima que o número de doentes nos Estados Unidos elegíveis para o fármaco poderá alcançar os 100.000 em três anos, aumentando de forma gradual num médio ou longo prazo. “A nossa intenção é que o número de doentes no mundo elegíveis para o fármaco aumente para 2,5 milhões por volta de 2030”, afirmou Haruo Naito, director-executivo da Eisai, aos jornalistas em Tóquio, no último sábado. “O novo fármaco pode não vir a gerar um grande lucro logo depois do lançamento, mas começará a contribuir para o nosso lucro no final de meados do segundo ou no terceiro ano após o lançamento”, disse sem dar números concretos.

Erik Musiek, neurologista da Universidade de Washington (nos EUA), disse que ficou “agradavelmente surpreendido” com o preço do medicamento. “Tendo em conta o mercado e o facto de que não há outros bons tratamentos, penso que está dentro da estimativa do que poderia esperar”, considerou.

Limitação dos doentes de Alzheimer ao fármaco

O acesso dos doentes iniciais ao fármaco será limitado por uma série de factores, que incluem as restrições de reembolsos da Medicare, o programa governamental de seguros para os cidadãos dos Estados Unidos com 65 ou mais anos, que representam cerca de 90% dos indivíduos que poderão ser elegíveis para o Leqembi. “Sem os centros federais da Medicare e Medicaid e a cobertura dos seguros, o acesso a quem pode tirar benefícios deste tratamento recentemente aprovado poderá estar disponível apenas para quem o consiga pagar do seu bolso”, referiu em comunicado a Associação de Alzheimer, nos Estados Unidos.

O Leqembi foi aprovado dentro do processo de avaliação acelerada da FDA, que é uma forma de acelerar o acesso a este fármaco com base no seu impacto nos biomarcadores subjacentes à doença, como é o caso das placas de beta-amilóide do cérebro. “Esta opção de tratamento é a última terapia a ter como alvo e a atacar directamente a doença, em vez de apenas tratar os sintomas”, assinalou em comunicado Billy Dunn, o responsável pelas neurociências da FDA.

Os centros da Medicare e Medicaid afirmaram na sexta-feira que as restrições actuais na cobertura para medicamentos aprovados através de um processo de avaliação acelerada poderão vir a ser reconsideradas. Se o fármaco receber uma aprovação tradicional da FDA, os centros da Medicare e Medicaid dizem que podem fornecer uma cobertura mais ampla. Os responsáveis da Eisai disseram que a empresa planeia submeter os dados do seu mais recente ensaio clínico com 1800 doentes como a base de uma avaliação tradicional do Leqembi.

Quanto a outros medicamentos contra a Alzheimer, o aducanumab, vendido com o nome comercial Aduhelm, já tinha recebido a sua aprovação acelerada em 2021, mesmo tendo poucas provas de que abrandasse o declínio cognitivo e apesar das objecções de especialistas fora da FDA. A Biogen começou a vender o Aduhelm a cerca de 52.000 euros (56.000 dólares) por ano antes de o preço diminuir para metade. Com uma aceitação e cobertura das seguradoras muito limitadas, as vendas apenas renderam 4,18 milhões de euros (4,5 milhões de dólares) nos primeiros nove meses de 2022.

Dúvidas sobre a aprovação

O lecanemab deve se usado em doentes com um declínio cognitivo leve ou uma demência inicial. Estima-se que façam parte deste grupo seis milhões de norte-americanos que actualmente vivem com Alzheimer. Para receber o tratamento, os doentes têm de antes de ser testados para se verificar se têm depósitos de beta-amilóide no cérebro. Depois, têm de fazer exames de imagem de ressonância magnética para que se vá monitorizando a inflamação do cérebro, pois este pode ser um potencial efeito adverso ligado ao fármaco.

Na fase III do ensaio clínico sobre o lecanemab, que é dado através de infusão, o medicamento abrandou em 27% a taxa de declínio cognitivo nos doentes que estão numa fase inicial da doença de Alzheimer comparativamente com os que estavam a ser medicados com o placebo. Quase 13% dos doentes tratados com o Leqembi no ensaio tiveram uma inflamação no cérebro.

Contudo, a decisão da FDA não se baseou na fase III do estudo, de acordo com o site da revista Nature. Tudo se baseou na fase II, em que se concluiu que houve uma diminuição nas placas de beta-amilóide em 856 doentes, mas não se chegaram a avaliar as capacidades cognitivas dos participantes. O aducanumab tinha sido aprovado de forma semelhante. Mesmo no caso dos participantes da fase III do ensaio do novo medicamento, não é claro qual seja o impacto nas vidas nos doentes com Alzheimer, além do abrandamento de 27% no declínio cognitivo.

As outras dúvidas são levantadas devido às mortes de participantes do estudo. Três doentes que tinham participado na fase III do ensaio morreram de complicações ligadas a convulsões e hemorragias no cérebro, noticiaram recentemente a revista Science e a STAT News. De acordo com essas publicações, investigadores pensam que os doentes possam ter morrido devido a um conjunto de complicações relacionadas com anomalias na beta-amilóide. Uma das hipóteses é que, ao atacar as placas de beta-amilóide, o fármaco acabe por enfraquecer os vasos sanguíneos. Todos os doentes também estavam a tomar medicamentos anticoagulantes na altura, o que pode ter piorado as hemorragias, relata-se na Nature.

A Eisai reagiu a essas acusações dizendo que era uma forma inapropriada de interpretar as conclusões e que consistiam em casos isolados. Além disso, indica ter reportado as mortes à FDA, que pede cautela aos médicos relativamente a essas complicações e exige que isso seja incluído na bula.

Babak Tousi, um médico neurogeriátrico na Clínica de Cleveland, considerou que a aprovação fará uma “grande diferença” porque se baseia nos biomarcadores desta demência, em vez de apenas se concentrar nos sintomas. “Vai mudar a forma como faremos o diagnóstico da doença de Alzheimer, que terá de ser muito mais apurado”, assinalou. Babak Tousi reconhece que os benefícios deste fármaco poderão ser modestos. “Ainda assim, será um benefício que não seríamos capazes de alcançar” antes da aprovação.