Os municípios mais amigos da bicicleta estão a pedalar menos. Estratégia nacional em risco

Com excepção das áreas metropolitanas, os territórios mais favoráveis ao uso da bicicleta perderam utilizadores a um ritmo acelerado e viram o carro ganhar terreno, mostram os Censos 2021.

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Murtosa, onde a bicicleta está enraizada nos hábitos de deslocação, perdeu um terço dos utilizadores Anna Costa

O aumento do peso do automóvel nas deslocações diárias dos portugueses não é propriamente uma surpresa, quando se olha para os resultados dos Censos de 2021. Tem acontecido nas últimas décadas e volta a ser assim entre 2011 e 2021: significava 61,6% das viagens entre casa e trabalho, passou a representar 66%.

Os números da utilização da bicicleta contam outra história e mostram um país a várias velocidades. Os territórios onde pedalar tem mais tradição registaram quedas acentuadas. Por outro lado, nas áreas metropolitanas (AM), o seu uso aumentou. Tudo somado, a repartição modal da bicicleta a nível nacional cresceu pouco, muito pouco, de 0,5% para 0,6%. Dificilmente serão cumpridas as metas que foram estabelecidas pela Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável (ENMAC) para 2030, avisam peritos em mobilidade.

Nos municípios onde o uso da bicicleta como meio de transporte tem uma persistência ao longo das décadas, a perda de utilizadores foi substancial. Nos casos da Murtosa e de Ílhavo, ambos no distrito de Aveiro, onde pedalar é um hábito enraizado, os dados mostram que a queda é superior a um terço.

Os dados recolhidos pelo PÚBLICO a partir dos resultados dos Censos 2021 mostram que os municípios que têm as melhores condições para o uso da bicicleta e que estão fora das áreas metropolitanas de Lisboa ou Porto estão a mudar de padrões de deslocação. Olhando para os 20 primeiros lugares do Bike Friendly Index, um ranking composto em 2018 por investigadores da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa, nota-se que o carro ganha peso em todos os municípios, menos na capital. Em alguns concelhos como Entroncamento, Almeirim, Ovar ou Marinha Grande, que à partida teriam um contexto favorável para usar a bicicleta, a perda de utilizadores chegar a atingir taxas de 40% e 50%.

“Se Murtosa e Ílhavo estão a caminhar para os números do panorama nacional, isso é assustador”, comenta o professor e investigador da Universidade de Aveiro (UA), José Carlos Mota. “Significa que as políticas não foram as correctas”, diz. A juntar a esse factor, a especialista em mobilidade Paula Teles olha para o contexto histórico de vários territórios que aparecem no topo da tabela, zonas onde era comum que os trabalhadores fossem de bicicleta para as fábricas. “Havia uma persistência disso no tempo, mas há uma queda na industrialização e uma economia ligada ao estatuto social”, o que tem levado à aquisição de carro próprio, refere.

Mas têm também surgido alterações na organização do trabalho, da vida das pessoas, argumenta o também especialista em mobilidade sustentável da Lisboa E-Nova, a agência de ambiente e energia da capital, Bernardo Campos Pereira. E nos meios mais rurais, explica, há também menos acesso a transporte público do que nos grandes centros urbanos, menos ferrovia e transporte fluvial, meios que favorecem a utilização da bicicleta no que resta do trajecto. José Carlos Mota fala também num aumento das distâncias percorridas nas deslocações pendulares, com o consequente aumento de tempo, cuja alternativa em transporte público ou bicicleta não é eficaz (ou, como é o caso de meios mais rurais, não existe).

O "farol" de Lisboa

Na análise destes números, há outro factor a ter em conta, lembra Campos Pereira, que concluiu recentemente um doutoramento em que estudou o crescimento da bicicleta em Lisboa na última década. Os Censos mostram que o número de utilizadores subiu 539%, mas Bernardo refere que este valor até pode pecar por defeito. “Em 2021 [quando foram recolhidos os inquéritos], muitas pessoas trabalhavam em casa, houve confinamentos”, lembra. Depois, os Censos só perguntam por deslocações para trabalho e escola e não por outras mais informais.

Mesmo que a pandemia distorça alguns dos resultados, acredita Paula Teles, não é suficiente para explicar as quedas tão acentuadas nos territórios que mais usavam a bicicleta. No sentido contrário, o aumento (ainda que, em alguns casos, tímido) nas AM mostra os efeitos de “um maior investimento que tem havido nos modos suaves, em ciclovias, em sistemas de partilha”, observa. Mas é pouco provável que a subida que se verifica nas áreas metropolitanas arraste o país até à meta de utilização deste modo fixada pelo Governo para a década.

Lisboa destaca-se como “um farol da bicicleta”, regista José Carlos Mota. Houve um conjunto de políticas públicas que se traduziu num aumento significativo não só das bicicletas, mas também do modo pedonal. Pelo contrário, e contra a corrente nacional, o automóvel caiu.

Bernardo Campos Pereira refere que, ainda assim, Lisboa começou tarde para o contexto europeu e teve interrupções neste percurso. Mas, a partir de meados da década passada, o “crescimento foi bastante forte”, impulsionado por obras e programas desenhados à medida. E deixa o aviso: “Não há mudança de hábitos se não há nenhum trabalho feito em relação à infra-estrutura."

Estratégia ciclável em risco

Os números da última década obrigam a uma conclusão: as metas da Estratégia Nacional para a Mobilidade Activa Ciclável para 2030 estão seriamente comprometidas. Este não é apenas um problema de políticas de transportes, mas também um problema climático, que coloca em causa a redução de emissões de gases com efeito de estufa. “O aumento da bicicleta desde 2011 é irrisório. Atingir 7,5% [de quota modal das deslocações até 2030] é impossível”, considera José Carlos Mota.

Para dar uma ideia de escala, cumprir esse objectivo daqui a sete anos “significaria passar dos actuais 30 mil utilizadores para 440 mil”, o que seria equivalente a retirar das estradas portuguesas a soma dos automobilistas de Lisboa, Porto, Sintra e Loures, calcula. No total, entre 2011 e 2021, houve mais 168 pessoas a utilizar a bicicleta neste tipo de deslocações.

E não é com uma política apenas para a bicicleta que se chega lá, é com uma política urbana que conjugue o desenho do espaço público com políticas de mobilidade, de habitação e trabalho, defende o professor da UA. Acresce que, notam as associações do sector, o Governo continua sem dotar a ENMAC do necessário financiamento.

Bernardo Campos Pereira junta outra camada de preocupação sobre as políticas públicas. “Se vamos continuar a apostar tudo no automóvel, não vamos ter uma mudança no comportamento”, adverte. O exemplo mais recente que aponta é o estudo sobre a micromobilidade apresentado na semana passada, pela Autoridade da Mobilidade e dos Transportes, que não aborda o problema do automóvel. Outro são os milhões que o Plano de Recuperação e Resiliência dedica às ligações rodoviárias. O investimento em infra-estruturas cicláveis não existe no documento.

Também Paula Teles desconfia que as metas da ENMAC consigam ser cumpridas. A pandemia travou a necessária articulação técnica e política que parecia começar a haver relativamente aos transportes públicos, que seriam um elo essencial para complementar os modos suaves, diz. E se há planeamento à escala nacional, esse trabalho não está a passar para a escala local. “Não vejo planeamento que tenha resultados na rua. Isso é um problema grave”, refere. Em último caso, a ausência de trabalho de planeamento mais fino pode comprometer o próximo quadro comunitário, avisa.