O Papa que aboliu a monarquia no Vaticano
Francisco, tão aclamado, não seria possível sem Bento XVI e a inspiração renovadora da sua renúncia. É importante contemplar Ratzinger.
Bento XVI morreu. Ficará conhecido como o Papa que renunciou e com isso mudou a arquitectura “político-institucional” do Vaticano. Mas também como um dos grandes pensadores do século XX e, em especial, um dos grandes pensadores da Europa. A escolha do nome Bento XVI era uma homenagem a Bento XV e ao seu papel na Europa da Grande Guerra. Joseph Ratzinger nunca subestimou o risco do regresso da guerra à Europa.
Francisco, tão aclamado, não seria possível sem Bento XVI e a inspiração renovadora da sua renúncia. É importante contemplar Ratzinger: regressar aos tempos do nazismo, à sua ascensão como teólogo, ao papel eminentemente progressista que teve no Concílio Vaticano II ao lado de Hans Küng, à regressão que fez com o Maio de 68 e ao tempo em que presidiu à Congregação para a Doutrina da Fé.
É justo dizer que algumas das posições mais rigidamente conservadoras imputadas a Bento XVI não são rigorosas. É preciso lê-lo. Em vários domínios, apesar de uma linguagem hermética, ele deixa pistas que abrem a porta a muita da pedagogia de Francisco. O problema de alguns com Bento XVI não residia nas suas posições, mas na apropriação que certas correntes conservadoras abusivamente querem fazer delas.
O grande gesto revolucionário de Bento XVI é a renúncia ao papado. Um gesto com impacto na história milenar da Igreja, que, aliás, aquelas correntes mais conservadoras nunca lhe perdoaram. A abdicação da cátedra de São Pedro importa uma reforma no modo de compreender o lugar e o papel do Papa.
Com a sua inteligência superior e com o seu conhecimento profundíssimo da história da Igreja, ele sabe que, depois disso, dificilmente as coisas ficarão iguais. Tanto mais que a renúncia contrasta com a estóica resistência da sua grande referência, o Papa João Paulo II. Paradoxalmente, ambos os gestos são admiráveis e defensáveis: um, pelo exemplo de valor que dá a todos os que padecem de uma incapacidade; outro, pelo desapego e generosidade que traduz.
A renúncia implica uma autêntica “dessacralização” do papado. Com tudo o que isso implica ao nível de uma visão mais colegial e mais sinodal da Igreja; mas também da compreensão do múnus papal, não como uma “dignidade” irrenunciável”, mas como um serviço temporário. Ela revelou também uma enorme humildade, capaz de reconhecer incapacidades e limites. E enviou uma mensagem de que a Igreja precisa de reformas que, até pela “captura” que muitos quiseram e querem fazer de Bento XVI, ele não estaria em condições de conduzir. Para lá de, no plano pragmático, ter evitado que a sua sucessão fosse manipulada pela Cúria.
O efeito “preventivo” da renúncia foi manifesto, quer porque atraiu uma visibilidade para o processo de sucessão que impedia a sua manipulação, quer porque surpreendeu possíveis “manipuladores”, quer porque a simples existência física de Bento XVI dava garantias únicas de lisura.
São muitos os que continuam sem alcançar a transcendência do gesto de Bento XVI. Alguns tomaram esta renúncia apenas pelo seu valor facial: a velhice, o cansaço e a consciência lúcida da virtual incapacidade. E outros houveram-na tão-só por aquela sábia precaução política, pondo os holofotes globais no processo de eleição do Papa seguinte, evitando que a respectiva sucessão fosse engendrada nos opacos bastidores da cúria vaticana.
Mas em especial, por ter vindo de quem veio, este gesto está carregado de sentido e de significado. A atitude de renúncia, insiste-se, tem o sentido de uma “dessacralização”, de uma “humanização”, de uma “normalização” do papado. O que está em linha com a própria actuação de Bento XVI, que, durante o seu pontificado, já havia deixado sinais de uma visão menos “sacral” da sua missão.
Ao publicar livros na qualidade de simples teólogo Josph Ratzinger e não de Papa — é o caso, pelo menos, de dois dos volumes de Jesus de Nazaré —, Bento XVI assinala ao papado a condição de um “serviço” e não de uma sagração que imprima carácter. Há um Papa em funções, com todos os seus atributos, e há uma pessoa singular que não deve actuar na sua veste de Papa. Esta separação de esferas tem um significado histórico e está em profunda harmonia com a futura decisão fundamental da renúncia.
A renúncia, só por si e enquanto tal, é conformadora de uma abertura a uma reconfiguração do múnus papal— que deixa de ser “vitalício” e potencialmente eterno. Nada que surpreenda para quem leu os seus livros ou, por exemplo, a sua longa entrevista Luz do Mundo, feita por Peter Seewald, o seu grande biógrafo.
Sem exageros, a resignação de Bento XVI é filha do mesmo sentido profético que teve a convocação do Concílio por João XXIII. Em rigor, a decisão do Papa Bento XVI corresponde à transformação do Vaticano numa república, onde antes regia uma monarquia (dita até absoluta). Francisco e o seu magistério não são compreensíveis nem seriam os mesmos sem este gesto fundacional e seminal. Na verdade, quando, no início do seu pontificado, Francisco se assume como Bispo — como mero Bispo de Roma — e se desprendeu de alguns dos sinais majestáticos que ainda rodeavam o papado, ele encarna a nova ossatura republicana do Estado Vaticano. Criada por esse homem bom e sábio que foi o Papa Ratzinger.