Morreu o intelectual e fazedor António Mega Ferreira, o mentor da Expo-98

Escritor, poeta, jornalista presidente do Conselho de Administração do Centro Cultural de Belém e da Parque Expo, tornou-se conhecido da maioria dos portugueses como comissário da Expo 98.

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António Mega Ferreira tinha 73 anos Nuno Ferreira Santos
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Mega Ferreira nas instalações da Orquestra Metropolitana de Lisboa, em 2017 Nuno Ferreira Santos
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O gestor cultural numa das casas onde presidiu à oferta musical para o público Nuno Ferreira Santos
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Mega Ferreira ficará para sempre associado à Expo-98, cuja mascote era o boneco Gil LUSA
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Mega Ferreira e o então ministro da Ciência e Tecnologia Mariano Gago, em Fevereiro de 1999, na apresentação da programação para o Pavilhão do Conhecimento DAVID CLIFFORD
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António Guterres, Jorge Sampaio e Mega Ferreira na condecoração do escritor com a Ordem Militar de Cristo, em 2007 LUSA
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Mega Ferreira foi jornalista, escritor, cronista, gestor cultural e pensador da vida pública portuguesa DANIEL ROCHA
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Vasco Graça Moura, que sucedeu a Mega Ferreira na administração do CCB, com o gestor cultural nas instalações da instituição Daniel Rocha

António Mega Ferreira, escritor, jornalista e gestor cultural cujo nome ficou indelevelmente associado a projectos como a Expo-98 e o Centro Cultural de Belém (CCB), morreu esta segunda-feira em Lisboa, aos 73 anos, avançou a Presidência da República.

Nascido em 1949, o seu nome tornar-se-ia uma referência incontornável (ainda que por vezes polémica) da cultura e do pensamento portugueses do pós-25 de Abril, sobretudo pela ligação a projectos que alavancaram a imagem da então jovem e periférica democracia ávida de inscrever-se no espaço europeu. A convite de Vasco Graça Moura, que presidia à Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, foi o comissário executivo da grande exposição mundial que transformou para sempre a zona oriental de Lisboa, a Expo-98, cuja candidatura tinha já liderado. Depois, presidiu à Parque Expo, ao Oceanário de Lisboa e ao Pavilhão Atlântico, equipamentos que ficaram como legado desse ambicioso projecto de comemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses à Índia.

Será aliás no Parque das Nações mais concretamente no Teatro Camões, hoje casa da Companhia Nacional de Bailado que o seu corpo será velado esta terça-feira, entre as 18h e as 22h. O funeral terá início às 16h30 de quarta-feira, seguindo o cortejo fúnebre para o Crematório do Cemitério dos Olivais, de acordo com informação das agências funerárias Servilusa.

Outra das suas funções mais reconhecidas foi a presidência da Fundação Centro Cultural de Belém (2006-2012), em substituição de João Fraústo da Silva. Mais recentemente, entre 2013 e 2019, foi director executivo da AMEC — Metropolitana, a instituição cultural sem fins lucrativos que gere a Orquestra Metropolitana de Lisboa e a Academia Nacional Superior de Orquestra, o Conservatório de Música da Metropolitana e a Escola Profissional Metropolitana.

As causas da morte de Mega Ferreira ainda não foram divulgadas. Sabe-se, no entanto, que em 1997, quando trabalhava para concretizar a grande exposição dos Oceanos à beira Tejo, lhe fora diagnosticado um adenocarcinoma colo-rectal.

“Colega desde o Liceu Pedro Nunes até ao fim do curso na Faculdade de Direito de Lisboa, um amigo de sempre, jornalista da imprensa e da televisão, editor, ficcionista, ensaísta, cronista, poeta, tradutor, gestor cultural, António Mega Ferreira foi uma das figuras mais dinâmicas da cultura portuguesa do último meio século”, lê-se na nota de Marcelo Rebelo de Sousa. "O trabalho de António Mega Ferreira enquanto gestor (na Expo, depois no CCB, mais tarde na [Orquestra] Metropolitana [de Lisboa]) deixou um pouco na sombra o escritor, ainda que, nas últimas duas décadas, se notasse um renovado empenho nas obras de criação, fossem poemas, romances biográficos, livros de crónicas ou de viagens, monografias, ensaios cultos, até ao seu último livro, um dicionário de palavras que deixámos de usar, mas que mantêm o travo da história vivida e da História colectiva [Roteiro Afectivo das Palavras Perdidas​, editado pela Tinta-da-China]."

“Esteta, entusiasta, erudito, conviviam na personalidade de Mega Ferreira o comprometimento cívico e a distância irónica. Foi um dos melhores da sua e minha geração no campo da cultura. Presto-lhe a minha homenagem sentida”, escreve ainda o Presidente da República.

Também António Costa, que chegou a ter a tutela da Expo-98 enquanto ministro dos Assuntos Parlamentares, reagiu à morte de Mega Ferreira, descrevendo-o no Twitter como "um notável jornalista e importante pensador e criador cultural": "Ficará para sempre como um dos grandes mentores da Lisboa contemporânea. Sonhou e concretizou a Expo-98. Não como evento, mas como uma nova parte da cidade que amava."

O ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva, por seu turno, “recebeu com profunda tristeza a notícia da morte de António Mega Ferreira, personalidade que deixa uma marca indelével na sociedade portuguesa”, diz uma nota enviada às redacções pelo seu gabinete.

Perdeu-se, sublinha o ministro, “um extraordinário intelectual público e um brilhante gestor cultural, uma combinação absolutamente incomum e que o distingue no panorama cultural português”, pela “ambição que colocou em tudo o que fez”. “Mega Ferreira foi um pensador de rasgo cosmopolita dotado de singular criatividade e notável capacidade de execução. Por tantas razões, deixa um grande legado ao país e permanecerá como exemplo", conclui Adão e Silva.

Do jornalismo aos livros

Republicano, anti-salazarista e anticlerical, como recorda a agência Lusa esta segunda-feira, o pai de António Taurino Mega Ferreira tinha uma papelaria na Baixa lisboeta e era sócio de uma loja de discos. Foi a sua morte que levou o futuro gestor cultural nado e criado na Mouraria ao primeiro emprego, o de tradutor de imprensa estrangeira no então Secretariado Nacional de Informação do Estado Novo.

Formado em Direito pela Universidade de Lisboa e em Comunicação Social pela Universidade de Manchester, Mega Ferreira foi depois jornalista e editor. Iniciou-se, ainda antes de 1974, no jornal oposicionista Comércio do Funchal, do seu amigo Vicente Jorge Silva (1945-2020), vindo depois a integrar as redacções do Jornal Novo, do semanário Expresso, d’O Jornal e da agência ANOP. Chegou a ser chefe de redacção do serviço de informação da RTP2 e do Jornal de Letras e fundou as revistas Ler (com Francisco José Viegas como chefe de redacção) e Oceanos.​

Como poeta e escritor, publicou mais de 40 obras, tendo experimentado a ficção, o ensaio, a poesia e a crónica. Crónicas italianas, lançado em 2021 pela Sextante, venceu em Setembro último o Grande Prémio de Literatura de Viagens Maria Ondina Braga da Associação Portuguesa de Escritores.

Numa das suas últimas entrevistas, concedida em Novembro à Rádio Renascença, Mega Ferreira dizia-se desiludido com o panorama político actual, em Portugal e no mundo. “Os políticos são tão prudentes, tão prudentes que se vê que estão cheios de medo. Portanto, vão cedendo terreno. Quando damos por isso, já estamos no charco.”

Apoiante de José Sócrates na campanha eleitoral de 2011, mostrava-se agora crítico da actual governação, por identificar nela essa excessiva “prudência”, e chegava mesmo a comentar que com o ex-primeiro ministro hoje suspeito de corrupção passiva, fraude fiscal e branqueamento de capitais "as coisas avançavam". Sobre a invasão russa da Ucrânia e o seu brutal impacto económico, dizia que “com a aceleração do processo histórico, as instituições internacionais têm que adequar o seu ritmo de resposta ao ritmo do desafio”.

Sobre a Expo-98, um dos seus mais importantes projectos, lamentava que o sonho da época não se concretizou, mas que “o país é melhor hoje”. E afirmava que a sua profissão de coração era a de escritor.

“Escrever é uma forma de ordenar – coisas, ideias, sensações. Há ideias que se tornam claras porque as escrevemos, antes disso são um magma. A viagem é muito enriquecida pelo exercício de escrita que fazemos sobre ela”, dizia ao PÚBLICO em 2017, a propósito do livro Itália, Práticas de Viagem, que então publicara na Sextante. As suas viagens italianas, confessava também, eram uma paixão irrenunciável: "Itália é sempre o primeiro impulso. Há uns quatro ou cinco anos estava a falar com uns amigos e disse-lhes: 'Até morrer, todos os anos hei-de ir a Itália.' (...). Vou a Itália como quem toma uma injecção. Depois posso ir a outros sítios, não sou monomaníaco, mas sou quase. O azzurro italiano chega-me. Dá-me um shot de reconciliação com a vida."

"Socialista não filiado"

Seria porém a sua actividade como gestor cultural a torná-lo conhecido da maioria dos portugueses. Primeiro na Expo-98, o grande projecto comemorativo da expansão marítima portuguesa do Portugal democrático, e depois com o CCB, de que viria a sair em 2012 por decisão do Governo de Passos Coelho, quando era secretário de Estado da Cultura o seu ex-companheiro da Ler Francisco José Viegas.

Na altura, o PÚBLICO recordava que Mega Ferreira se descrevia como "socialista não filiado" e que durante o seu mandato a instituição sofreu profundas transformações: foi o período em que o CCB perdeu o Centro de Exposições para ali ver nascer o Museu Colecção Berardo, decisão que o gestor não subscrevia. Seria ele também a pôr fim à popular Festa da Música, substituída pelos Dias da Música, de menor dimensão.

Mega Ferreira foi de resto bastante criticado por aumentar, tornando-o dominante, o peso da música no CCB, que com ele lançou um programa de residências para orquestras e a figura dos artistas associados. Mas também houve quem elogiasse a sua abertura à experimentação no campo do teatro e da dança, através de projectos como a Box Nova e a Fábrica das Artes, e a atenção a criadores internacionais de referência. Foi com ele, lembrava em 2019 o coreógrafo e também gestor cultural Rui Horta, que passaram por Belém nomes como Pina Bausch, Sasha Waltz, Joseph Nadj, Meg Stuart ou Bill T. Jones, "cumprindo aquela que deveria ser uma das missões do CCB, expandir a fruição cultural às referências mundiais nas artes ao vivo".

Propunha para o CCB a construção de dois novos módulos, com biblioteca, auditório e multiusos, uma ideia que estava no papel desde o projecto original de Manuel Salgado e Vittorio Gregotti. Entretanto, em 2018, abria-se finalmente um concurso para completar o centro cultural com os famosos módulos 4 e 5, destinados porém à hotelaria e ao comércio.

A obra ficou contudo em suspenso depois de mais um longo e conturbado processo — primeiro devido aos trâmites para a legalização do uso dos terrenos, que demorou três anos; depois devido à desistência do consórcio que ganhou o concurso público internacional para a construção, devido à disrupção causada pela pandemia. Os efeitos da guerra na Ucrânia poderão ter adiado uma vez mais os planos do actual presidente do conselho de administração do CCB, Elísio Summavielle, que em Julho de 2021, em entrevista ao Jornal de Mafra, situava o início da construção no final de 2023 ou início de 2024.

Numa nota divulgada ao início desta tarde, Elísio Sumavielle juntava ao elogio "da obra literária, de jornalista, e da inovadora acção que lhe é devida na vida cultural de todos nós, que constituirá sempre uma referência", a menção ao amigo que sempre o ajudou e apoiou, "com o seu importante conhecimento", no CCB.

Nos últimos tempos, era à actividade de escritor que se dedicava. Reformado da Metropolitana aos 70 anos, o autor que se confessava benfiquista editou Desamigados, ou como Cancelar Amizades sem Carregar no Botão (Tinta-da-China, 2021), Mais Que Mil Imagens (Sextante, 2020), Santo António, de Lisboa e Pádua (Clube do Autor, 2019), assinou o posfácio da colectânea Poetas de Dante — Visita ao Inferno (2021) e viu reeditadas algumas das suas obras anteriores, como Roma Exercícios de reconhecimento (2003).

Na última conversa com a Renascença, Mega Ferreira partilhava ter alguns novos "projectos abertos no computador", mas confessava não saber se tinha forças para os completar. "Se ficar por aqui, fico bem. Fiz o essencial que tinha que fazer." com Inês Nadais

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