Os “reparadores solidários” salvam electrónicos do lixo e dão-nos a quem precisa

Voluntários que consertam gratuitamente telemóveis, tablets, portáteis estão não só a “ajudar pessoas”, mas também a desincentivar o consumo de novos aparelhos e a produção de resíduos.

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Fernando Correia conserta gratuitamente telemóveis, computadores portáteis e até televisões que poderiam acabar no lixo Teresa Pacheco Miranda
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Ambientalistas defendem aposta no sector da reparação Teresa Pacheco Miranda
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Muitos aparelhos possuem contaminantes que não podem ser depositados no lixo comum Teresa Pacheco Miranda

Aquilo a que Fernando Correia chama de “quarto da tralha” é, na verdade, um pequeno hospital dos electrónicos. Ali, este programador de 49 anos conserta gratuitamente telemóveis, tablets, computadores portáteis e até televisões que, de outro modo, provavelmente “acabariam por ir parar no lixo”. Uma vez reparados, são doados a pessoas que deles precisam. Só na quadra natalícia, Fernando pretendia oferecer cinco aparelhos que antes não funcionavam.

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Voluntários dedicam-se a recolher telemóveis e computadores que não funcionam em grupos de doação nas redes sociais

Teresa Miranda

“Tenho aqui quatro tablets, uma consola e um portátil prontos para doar, mas a verdade é que faço isto ao longo de todo o ano. Através de um grupo no Facebook, recebo aparelhos com o ecrã partido ou a bateria viciada, por exemplo. Tento consertá-los nas minhas horas livres e, depois, volto a oferecer a membros [da mesma comunidade]”, explica Fernando Correia.

A comunidade de que fala Fernando chama-se Dou-te se vens (sic) buscar Porto, um grupo privado que reúne mais de 54 mil pessoas na rede social Facebook. “Houve um efeito bola de neve quando as pessoas perceberam que me davam coisas partidas que eram em seguida consertadas e doadas”, explica o programador CNC, que vive em Matosinhos. Fernando acredita já ter doado mais de cem aparelhos electrónicos reparados desde que se tornou membro, em 2018.

O custo de reparação em Portugal é exorbitante. Quando as pessoas pedem orçamentos nas lojas, percebem que mais vale comprar um aparelho novo. É por isso que existe tanto desperdício, é por isso que tantas coisas que poderiam ser reparadas vão parar ao lixo. Felizmente, algumas delas acabam cá em casa”, afirma.

Um estudo recente estimava que, só este ano, mais de 5000 milhões de telemóveis iriam para o lixo em todo o mundo. Os dados indicados no documento recordam-nos que somos bons não só a descartar aparelhos, mas também a acumulá-los. Guardamos auscultadores, comandos e electrodomésticos por inércia ou na esperança de repará-los um dia. Estes resíduos electrónicos, que poderiam ter uma segunda vida, ou serem encaminhados para a reciclagem através dos pontos de recolha Electrão, ficam muitas vezes parados em gavetas, caves, sótãos e caixas.

Através de grupos privados no Facebook, muitos aparelhos em Portugal estão a ser alvo de reparações solidárias. O oficial de justiça Paulo Santos, de 47 anos, sempre teve “o bichinho” dos consertos. Autodidacta, costuma há muito ajudar colegas e amigos a arranjar computadores. Quando entrou no Dou-te Se Vieres Buscar (Distrito do Porto), uma comunidade que agrega quase 17 mil membros, percebeu que poderia usar este dom para ajudar outras pessoas.

“Consertei cerca de 15 computadores durante a pandemia. As pessoas precisavam deles para trabalhar ou estudar durante o confinamento. Muitas vezes montava um a partir de dois. O meu mal é que tenho muito espaço em casa. Vou aceitando doações de coisas partidas, guardo tudo e depois posso ir lá buscar peças, memórias, discos”, conta o oficial de justiça.

Se a maioria vê nestas reparações solidárias um gesto de cuidado – com as pessoas e com o ambiente –, para Paulo Santos há também uma componente daquilo que chama, a brincar, de “egoísmo”. “É claro que estava a ajudar pessoas, como famílias brasileiras que haviam acabado de chegar e não tinham computador, mas também estava a ocupar o meu tempo livre”, diz o oficial de justiça.

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Os reparadores solidários recebem aparelhos danificados através de grupos de doação no Facebook Teresa Pacheco Miranda

Como escolher o destinatário

Os aparelhos reparados são geralmente anunciados em posts nos grupos do Facebook. Quem desejar o item tem de manifestar interesse na caixa de comentário e, depois, fazer figas para ser escolhido. Não é permitido o envio de mensagens privadas para tentar pressionar ou convencer quem oferece. Quem o faz, corre o risco de ser bloqueado.

Uma das partes exigentes da reparação solidária é escolher o destinatário. Quando se tem em mãos um tablet consertado, por exemplo, deseja-se que o produto chegue às mãos de alguém que não tem condições de comprá-lo. Mas Fernando Correia alerta para o risco de se pensar que apenas pessoas em situação de pobreza merecem electrónicos reparados.

“Não concordo com a noção de que só devemos ajudar pessoas carenciadas. Imaginemos uma família monoparental em que a mãe trabalha, paga todas as contas, mas ao fim do mês não lhe sobra dinheiro para dar um tablet ao filho. Essa criança também merece. Não tem preço o que sentimos quando vamos entregar os electrónicos às famílias e vemos aquela emoção”, conta Fernando Correia.

Na hora de escolher quem vai ficar com os objectos reparados, Fernando avalia os perfis e lê atentamente os comentários. O mesmo faz Ricardo Silva, um outro reparador solidário que possui uma loja de informática no Porto. “Conserto computadores que estavam aqui encostados há anos, mas quero dar a quem de facto precisa. Motiva-me fazer as pessoas felizes, mas não quero ser enganado”, confessa o dono da Qube Systems.

Sabia que...

...pode localizar os pontos de recolha ou reparação mais perto de casa na página Onde Reciclar

Tanto Ricardo Silva como Paulo Santos recorrem ainda às indicações de Raquel Cardoso, administradora daquele grupo no Facebook e alguém que “conhece bem a comunidade”. Raquel está ligada à gestão ou moderação de dois grupos de doações. É ela quem aprova as publicações e monitoriza os comentários, além de ter um “intenso trabalho de bastidores”. É Raquel quem “faz a ponte com a comunidade”, resume Ricardo Silva, “sinalizando as diversas necessidades das famílias” – que podem ser tanto um telemóvel para um idoso que vive sozinho, por exemplo, como um computador para um imigrante em teletrabalho.

“Com as acções solidárias destes membros, podemos ver pessoas felizes. O trabalho voluntário destes cidadãos glorifica a humanidade, a sustentabilidade e a entreajuda. Eles são um exemplo a seguir”, afirma Raquel Cardoso, cujo trabalho nos grupos de doação de objectos e alimentos já lhe valeu uma apresentação na Semana Europeia de Redução de Resíduos.

Cuidado com os resíduos contaminantes

Ao darem uma segunda vida aos aparelhos, estes voluntários estão não só a ajudar pessoas, mas também a desincentivar o consumo de novos aparelhos e a produção de lixo electrónico. Esta actividade de reparação – solidária ou não – é considerada “fundamental” pela associação ambientalista Zero.

Portugal apresenta o pior desempenho europeu no que toca ao tratamento de resíduos de aparelhos electrónicos. Só 32% dos Resíduos de Equipamentos Eléctricos e Electrónicos haviam sido reciclados em 2020, segundo o relatório do Eurostat. Isto significa que o país posiciona-se abaixo da média europeia.

“As reparações solidárias são uma actividade louvável pois reduzem a quantidade de resíduos e dão uma nova vida a um aparelho. Portugal deve incentivar a indústria da reparação, que é importante tanto para a economia portuguesa como para o ambiente”, afirmou ao PÚBLICO Rui Berkemeier, especialista da Zero para a área dos resíduos.

Rui Berkemeier alerta apenas para a importância de encaminhar “para o destino correcto” os componentes que já não podem ser reaproveitados. “Muitos aparelhos possuem contaminantes que não podem ser depositados no lixo comum”, observa o especialista da Zero. “Mas isso é um detalhe. É muito interessante quando vemos a sociedade a organizar-se sozinha e a encontrar respostas que o próprio país não oferece”, elogia.