Um legado pelo planeta: eles têm filhos vegan porque sonham com um mundo mais verde

Transmitem o veganismo aos descendentes como quem ensina uma receita de família. Sofia, Hugo, Inês, João, Adélia e Marco estão a educar crianças vegan e mostram que não precisa de ser complicado.

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Cada vez mais portugueses escolhem uma dieta à base de plantas e um dos motivos é a sustentabilidade NELSON GARRIDO

Num pequeno apartamento a poucos minutos da Praça da Batalha, no Porto, Nicolau e Benjamim – ou “Nico” e “Ben”, como são carinhosamente apelidados – são crianças felizes. Na cozinha, têm uma bancada em ponto pequeno ao lado da dos adultos, onde já sabem cortar legumes com uma faca. Nicolau tem três anos e Benjamim está quase a fazer cinco. Para eles, aventuras na cozinha com os pais, Sofia e Hugo Ferraz, são tão naturais como não comer nada de origem animal.

Sofia é pasteleira e consultora de restauração e não come carne nem peixe desde os 14 anos. Hugo é videógrafo e formador numa escola de café. Antes flexitariano, tornou-se ovolactovegetariano quando conheceu Sofia, há cerca de sete anos e meio, por influência da companheira.

Quando trouxeram Benjamim ao mundo, Hugo e Sofia, antigos proprietários da confeitaria Chá das Cinco (que tiveram de fechar por causa da pandemia), estavam já mentalizados de que não iriam dar animais a comer aos seus filhos – mas iria ficar por aí. Foi Benjamim que lhes trocou as voltas, quando começou a desenvolver reacções alérgicas ao leite e ao ovo, o que os obrigou a retirar estes alimentos da dieta da família, numa mudança que Sofia Ferraz descreve como “forçada”, mas inesperadamente “fácil”. Nicolau teve, entretanto, as mesmas alergias, mas, apesar de terem desaparecido entretanto, voltar a introduzir qualquer produto de origem animal já não fazia sentido – por causa daquilo a que a mãe de Nico e Ben chama “mudança de consciência”. A família é vegan há quatro anos.

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Sofia e Hugo Ferraz com os filhos, Nicolau e Benjamim NELSON GARRIDO

A alguns quilómetros, na Póvoa de Varzim, há música ambiente e aroma a bolo de chocolate vegan a dar as boas-vindas. Diana, de quatro anos, recebe quem a visita com um convite para brincar e apresenta os irmãos: Dinis, de seis anos, e Rita, de três. São veganos desde que se lembram do que é comer, seguindo as passadas dos pais, que não comem produtos de origem animal desde 2017.

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Diana e os dois irmãos são vegetarianos desde a introdução alimentar PAULO PIMENTA

Donos do seu próprio estúdio de ioga, os pais Adélia Loureiro e Marco Santos tornaram-se ovolactovegetarianos em 2005, como requisito da formação para se tornarem instrutores, devido a uma filosofia de “não-agressão” que se alarga a não agredir o planeta e os animais, como explica Adélia.

Marco Santos e Adélia Loureiro com os filhos, Dinis, Diana e Rita PAULO PIMENTA
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Marco Santos e Adélia Loureiro com os filhos, Dinis, Diana e Rita PAULO PIMENTA

Em 2017, com um Dinis de três meses no colo, decidiram levar esta filosofia mais longe, adoptando o veganismo para toda a família. Com a amamentação, Adélia apercebeu-se da sua capacidade de se ligar aos filhos e, sabendo como funciona a indústria do leite, decidiu deixar os produtos de origem animal que ainda tinham lugar no seu frigorífico. “Percebi que não devia privar outro ser de fazer o mesmo que eu faço [amamentar] por uma questão de paladar”, recorda.

Mais a sul, a pequena Aurora, de três anos, arranca sorrisos quando vai ao parque e decide distribuir bolinhas de feijão por todos os que por ela passam. É uma “bebé vegetariana”, diz a mãe, Inês Guilherme: não conhece o sabor da carne ou do peixe e, para já, não tem interesse em conhecer.

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Aurora, de três anos, é uma "bebé vegetariana" João Moreira

João Moreira e Inês Guilherme vivem em Sintra e estão casados desde 2016, o mesmo ano em que, conscientes do impacto ambiental da sua alimentação, começaram uma jornada rumo ao veganismo. Segundo João, a questão que o casal se pôs foi: “Com o conhecimento das alterações climáticas, o que é que eu posso fazer e o que é que está dentro do meu raio de alcance para, pelo menos, reduzir o meu impacto?” E, porque “todos os motivos são válidos para abraçar uma vida mais verde”, como diz Inês, de um workshop de bolos sem ovos passaram para uma alimentação completamente proveniente da terra. E era só natural para o casal que a filha Aurora seguisse o mesmo caminho.

Educar uma criança vegana

Quando era uma adolescente ovolactovegetariana, numa época em que o desconhecimento levava os outros a perguntar-lhe se comia peixe ou frango, Sofia Ferraz podia apenas sonhar com uma experiência normal na maioria dos restaurantes. Ir jantar fora com os pais era, muitas vezes, sinónimo de comer uma omelete com queijo, ou um prato com arroz, batata e salada. Hoje, pode levar os filhos a todo o tipo de restaurantes. Pode comprar-lhes um ovo da Páscoa, chupa-chupas, gomas e gelados. Pode dar-lhes uma experiência normal com “coisas que, para as crianças, fazem muita diferença”.

Nico e Ben comem de tudo. Se, por um lado, as opções “são imensas”, por outro, gostar de cozinhar em família permite que criem em casa o que não se encontra na rua. Ainda assim, os irmãos de três e quatro anos “já sabem que comem diferente dos amigos”, conta Sofia, interrompida por Hugo, que diz não querer “que eles se sintam uns bichos-do-mato”.

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Cozinhar em família é um hábito dos Ferraz NELSON GARRIDO

E não parece ser o caso. Nicolau e Benjamim têm bem presente o porquê de não comerem produtos de origem animal. O assunto é frequentemente debatido: raciocínios simples como “não comemos animais, porque os animais devem estar vivos e, para comermos, temos de os matar” e “Os nossos gatos não bebem o meu leite. O meu leite é para os meus bebés, logo, o leite da vaca é para os bebés das vacas”, nas palavras de Sofia (que ainda amamenta o filho mais novo) são frequentemente utilizados, tendo em conta a tenra idade dos irmãos. Mas, como de pequenino é que se aprende, os pais dizem ser comum eles dizerem aos amigos e família que não devem comer animais – “São muito activistas”, diz Hugo, entre gargalhadas.

À excepção dos momentos em que foi necessário verificar se eles tinham alergias, Nico e Ben nunca experimentaram alimentos de origem animal e não aceitam comer nada que reconhecem como carne, peixe ou ovos. A dificuldade está “nos alimentos processados”, como um gelado ou um bolo, em que não é automaticamente percebida por uma criança a presença de produtos de origem animal, o que faz os filhos de Sofia e Hugo pedirem ocasionalmente para comer. Mas o “não” nunca vem sozinho: está, normalmente, acompanhado por uma explicação bem recebida sobre o que tem aquele alimento e pela oferta de uma versão vegana do mesmo.

Por outro lado, Aurora pode comer alimentos de origem animal, se assim o entender. Apesar de os alimentos que compõem a despensa de casa serem totalmente escolhidos pelos pais, eventos sociais tornam-se excepções. Na “fase do ‘eu quero’”, como diz a mãe, Inês Guilherme, a família opta por “ter uma postura pragmática” e privilegiar o desenvolvimento psicológico: mesmo que Aurora não se interesse por carne, peixe, leite de vaca ou ovos, quando pede um alimento em que os ingredientes não são óbvios, está autorizada a explorar os diferentes sabores e texturas.

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Inês Guilherme e a filha, Aurora João Moreira

“Eu acho que, nestes momentos, é preferível deixar a criança provar, porque está a vivenciar o que é estar num evento a partilhar comida, a crescer, tendo em conta essas referências na sua mente”, opina Inês, que espera que seja possível, com o tempo, criar um debate com a filha acerca do que ela come. Contudo, saber que Aurora já tem “referências do que é mais visível, como um ovo” e consegue “entender que aquilo não é o tipo de coisa que ela come” é reconfortante, admite João Moreira.

Já os três filhos de Marco e Adélia nunca chegaram sequer a conceptualizar a ideia de consumir produtos de origem animal. Apesar de os pais nunca se terem sentado com eles para explicar o porquê de não comerem carne como os amigos, Dinis, Diana e Rita “não vêm aquilo como comida”, diz a mãe. Pelo contrário, ficam até surpresos: “Mas as pessoas comem animais? Que tipo de animal?”

No caso de alimentos processados em que os ingredientes de origem animal são menos evidentes, o hábito de perguntar se são veganos já se instalou – e até o pão é questionado. “Nós fazemos o pão cá em casa. E costumamos fazer quase sempre a mesma receita. Um dia calhei fazer uma receita um bocadinho diferente e o pão era mais claro. Perguntaram logo se aquele pão era o deles!”, conta Marco Santos.

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Alimentos onde os ingredientes são menos óbvios exigem mais cuidado por parte das familias PAULO PIMENTA

Nas festas de aniversário, de forma semelhante a Nico e Ben, os filhos de Marco e Adélia levam consigo alternativas veganas quando os anfitriões não as oferecem. Além disso, há sempre batatas fritas ou pipocas. “Mesmo que seja pouco saudável, há sempre algo que eles podem comer”, afirma Adélia, que concorda que o crescimento do número de opções vegetarianas permite que a família possa ter esta abordagem “sem sacrifícios”, possibilitando que as crianças tenham uma integração social saudável. Pelo contrário, as outras crianças mostram até curiosidade em relação aos “pratos mais coloridos”, que Diana dá prontamente a provar.

A professora associada Isabel Macedo Pinto, da Faculdade de Psicologia da Universidade do Porto e investigadora na área da parentalidade e educação infantil, destaca a importância de “transmitir as ideias de uma forma positiva”, com uma explicação adaptada à idade – algo que se aplica não só ao estilo de vida vegetariano, mas a qualquer mensagem que se queira transmitir a uma criança.

“Quando os pais têm um projecto e sabem muito bem porque é que o têm, e têm a sua argumentação e as suas ideias bem definidas, as coisas resultam muito bem”, explica, reforçando a necessidade de “criar um ambiente em que as crianças se sintam bem, falar das coisas, não fazer tabu, discutir com eles e criar momentos agradáveis de interacção”, privilegiando sempre a integração social da criança.

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Para Sofia e Hugo Ferraz, é importante que as crianças tenham liberdade de escolha NELSON GARRIDO

E se deixarem de ser vegetarianos?

Sofia Ferraz compara a sua forma de ensinar Nicolau e Benjamim sobre alimentação com quem educa os filhos em relação ao tabaco. “Eu não lhes vou dizer que é uma boa ideia eles fumarem, nem vou contribuir com o meu dinheiro para que eles fumem. Mas se, um dia, eles quiserem fumar, eu não vou deserdá-los por causa disso”, explica. O mesmo acontece com o veganismo: se, um dia, Nicolau ou Benjamim optarem por comer produtos de origem animal, tal como os pais decidiram não o fazer, está tudo bem. “Só espero é estar a ensinar-lhes o máximo, para que eles façam uma escolha semelhante à nossa de forma justificada”, admite.

Adélia Loureiro e Marco Santos também não têm qualquer receio de que Dinis, Diana e Rita mudem de opinião, visto que, “quando eles tiverem consciência, podem fazer uma escolha, porque até Ghandi quis experimentar”, afirma o professor de ioga.

No lar da pequena Diana, cozinhar em família também é um hábito PAULO PIMENTA
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No lar da pequena Diana, cozinhar em família também é um hábito PAULO PIMENTA

“Há uma história assim: Ghandi nasceu numa família vegetariana e, na irreverência da adolescência, quis provar. Claro que, para um corpo que não está habituado a digerir carne, aquilo não deve cair muito bem”, comenta, entre risos.

Inês Guilherme partilha da mesma opinião: a liberdade de escolha de Aurora virá com a sua consciência, se estiver informada. “Desde que ela, sabendo a verdade, opte então por um caminho diferente, é o rumo dela. Será a escolha dela e, aí, já não podemos interferir. Se ela quiser mudar – o que eu acho pouco provável, mas possível –, estaremos aqui para respeitar”, conclui.

Um estilo de vida em honra do planeta

Se são activistas, Nicolau e Benjamim saem à mãe: com uma pequena plataforma na rede social Instagram, Sofia Ferraz fala sobre sustentabilidade, parentalidade positiva e escolhas mais conscientes. De receitas vegetarianas à normalização das fraldas de pano, a consultora de restauração partilha segmentos do seu dia-a-dia e quer, principalmente, alertar “que as crianças também são pessoas”.

Um estudo que avalia os números do movimento veggie em Portugal, realizado pela consultora alimentar espanhola Lantern e publicado em 2021, mostra que a sustentabilidade é um grande motivador para a escolha de comer menos carne, e uma grande maioria dos vegetarianos e vegans (73%) assinala o bem-estar do planeta como um motivo para a sua escolha. A produção de carne é uma das que mais impacto tem no ambiente: à luz da ciência, o planeta “agradeceria” se toda a humanidade reduzisse bastante o consumo de carne.

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Alternativas reutilizáveis a produtos do dia-a-dia é mais um hábito sustentável adotado pela família do Porto NELSON GARRIDO

No pequeno apartamento da Batalha, não são só as fraldas que se reutilizam: papel higiénico, lenços e guardanapos passaram a ser de pano. Contudo, ainda compram fast fashion para os filhos de vez em quando, “porque eles crescem muito rápido”; e, nestes dias, deram uma escova de plástico com formato de leão ao Benjamim. “Não somos perfeitos”, reforça o casal.

E não há mal nisso. “Temos de evitar a perfeição”, como diz a mãe da pequena Aurora. “Se estamos à espera de ser perfeitos para começar algo, acabamos por nunca começar”, acrescenta Inês Guilherme.

Na casa de Inês e João, o veganismo vai muito além da alimentação e visa o planeta como um todo: produtos testados em animais, calçado com pele e plástico são evitados ao máximo possível. “[É seguir a] premissa de tentarmos que as nossas acções tenham um menor impacto possível”, refere João Moreira. E as fraldas de Aurora também são reutilizáveis e “muito giras”, diz a mãe, a rir.

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Até os animais de Adélia Loureiro são vegetarianos. A única exceção é Ruca, o gato PAULO PIMENTA

Já na vivenda da Póvoa entram brinquedos, muitos animais e “produtos que não agridam o ambiente”. Quando as finanças o permitem, Marco e Adélia escolhem champô, detergente e produtos semelhantes com ingredientes que não poluam as águas. Além disso, a família recebe um cabaz com legumes biológicos produzidos localmente, recicla e confecciona o próprio pão. O lema principal? “Evitar o desperdício”, concordam – o que não é difícil numa casa em que até os animais (excepto o gato) são vegan.

“O que fizeste por este planeta?”

Sofia, Hugo, Inês, João, Marco e Adélia transmitem o estilo de vida vegano aos filhos como quem ensina uma receita da avó. Criaram uma nova tradição, um legado que esperam ser passado de geração em geração, porque querem ver um mundo melhor, um planeta com água e biodiversidade. Fazem-no para que os filhos possam ter um lugar onde viver, tal como eles sempre tiveram.

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Sofia Ferraz e o pequeno Nicolau NELSON GARRIDO

“Nós dizemos muitas vezes que estamos a trabalhar para que o mundo fique melhor para eles, ou seja, nós já não vamos lucrar com uma reversão das mudanças ambientais, mas eu quero que eles tenham um planeta para viver. Eu quero que eles possam ter filhos”, admite Sofia Ferraz, enquanto observa Nico e Ben, que brincam no sofá.

Adélia Loureiro e Marco Santos desejam que o seu legado se resuma a três seres humanoscom consciência”. Adélia diz esperar que os filhos “tenham todo o conhecimento possível sem terem de estudar tanto” como os pais, um dia, estudaram. Por outro lado, Marco sonha com um futuro em que Dinis, Diana e Rita sejam um exemplo e melhorem a qualidade de vida dos outros também”.

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Aurora com o pai, João Moreira, na Quinta das Águias, em Paredes de Coura Inês Guilherme

Inês Guilherme, por seu turno, prevê um cenário em que a filha, já adulta, mostra gratidão. Recorda uma frase que já não sabe onde leu – “Quando os teus filhos crescerem, o que é que lhes vais dizer, quando te perguntarem: ‘O que fizeste por este planeta?’” – e reflecte sobre o impacto que, juntamente com João, quer ter na vida de Aurora, que vai das fraldas reutilizáveis a uma alimentação saudável e sustentável.

“Acredito que ela, um dia, vai dar valor”, observa. “E até identificar-se com aquilo que escolhemos para ela neste momento.”

Texto editado por Claudia Carvalho Silva