Medicamentos não são bens de consumo e as farmácias não são mercearias

Se queremos uma valorização da farmácia e do farmacêutico, não podemos banalizar a profissão: os efeitos da nossa atuação na saúde dos utentes é tão real quanto a dos medicamentos que dispensamos.

As farmácias são locais de venda a retalho de medicamentos. Têm como propósito fundamental garantir o acesso equitativo a tecnologias de saúde, sejam medicamentos ou dispositivos médicos, bem como garantir a sua correta e segura utilização. Desenvolvem, portanto, uma atividade de saúde, sendo um sector fortemente regulamentado que, apesar de privado, presta um serviço de interesse público.

Não fazem parte do Serviço Nacional de Saúde, mas são reconhecidos espaços de saúde, com crescente oferta de serviços de promoção da saúde e do bem-estar, e um ponto central do sistema de saúde do nosso país, suprindo muitas das falhas do SNS. São muitas vezes o primeiro local, e por vezes o único, onde os utentes acorrem com queixas de saúde, onde lhes é dispensada a medicação para o tratamento ou gestão da patologia, e novamente nas subsequentes renovações e ajustes da terapêutica. Isto coloca os farmacêuticos numa posição privilegiada para garantir e promover melhores resultados em saúde aos utentes.

Mas a prestação destes cuidados e serviços de saúde não é devidamente valorizada nem comparticipada pelo Estado, estando os custos somente a cargo do utente. Assim, o financiamento das farmácias em Portugal assenta maioritariamente na margem comercial da sua atividade de venda de medicamentos e produtos de saúde. Tal cria a necessidade de vender mais para subsistir, condiciona os atendimentos e fomenta a mercantilização do sector, quando o foco deveria estar na otimização dos resultados em saúde e na qualidade de vida dos utentes.

Além disso, muitos serviços e cuidados têm sido prestados de forma voluntária, para garantir a venda de produto ou tentar a fidelização do cliente por algum tipo de facilidade ou promoção na aquisição dos seus medicamentos. Isto leva à falta de reconhecimento e valorização dos serviços prestados não só pelos utentes como também pelo Estado, e à banalização do medicamento como bem de consumo.

A gratuitidade, o voluntarismo e esta banalização fazem com que os utentes, ou neste caso clientes, se sintam no direito de fazer certas exigências, como a aquisição de medicamentos sem prescrição médica.

Ademais, o preço de alguns destes medicamentos e dispositivos médicos é baixo, mesmo sem a comparticipação do Estado. O que tem levado à situação de o cliente querer adquirir o medicamento sem receita, porque “ele é tão barato que não vale a pena ir pedir receita”. Pior ainda quando é o médico prescritor a informar que a medicação é tão barata que “em qualquer farmácia lhe vendem isso sem receita”. Ou, sendo o medicamento sujeito a receita médica mas não comparticipado, “não vale a pena ter receita, porque o preço é o mesmo”. Isto é a banalização do medicamento, é tornar uma tecnologia de saúde com reais efeitos, benéficos e também maléficos, na nossa saúde ao mesmo nível de qualquer outro produto de consumo.

Desengane-se quem pensa que determinado medicamento por ser barato é inócuo ou faz menos mal à saúde. Não há medicamentos inócuos, e o preço dos mesmos não está relacionado com a sua perigosidade. Na dúvida, pergunte ao seu médico ou farmacêutico.

A consequência de promover esta cultura de banalização dos medicamentos, será promover o consumo dos mesmos. Isto levará a situações de abuso e dependência de medicamentos, com enormes consequências para a saúde individual e para a saúde pública, como já se observa em alguns países como é o caso dos Estados Unidos da América e do Reino Unido.

Culpados? São muitos… Desde logo as farmácias e todos os seus profissionais, para agradar o cliente e para subsistirem. O médico, por estar assoberbado de trabalho, não conseguindo dar resposta atempada a todas as solicitações. O Estado, por não rever a política de financiamento dos medicamentos e produtos de saúde. O utente/cliente não pode ser culpado, apenas tira partido da má prática de quem tem a responsabilidade de fazer melhor.

Felizmente a ocorrência destas situações tem diminuído, o que demonstra uma maior consciencialização por parte dos farmacêuticos, técnicos e técnicos-auxiliares de farmácia das suas responsabilidades na promoção do uso responsável do medicamento, apesar de ainda ser frequente ouvir, ao negar a dispensa de um medicamento sem a apresentação de prescrição médica, a resposta indignada de “na farmácia ao lado vendem-me!”.

As leis existem, e são iguais para todos. A opção de as cumprir é com cada um. Mas se queremos uma maior valorização da farmácia e do farmacêutico, não podemos banalizar a nossa profissão: os efeitos da nossa atuação na saúde dos utentes é tão real quanto a dos medicamentos que dispensamos.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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