A centopeia argentina e o triunfo do Robocop

O que acontecerá se, no domingo, Messi for campeão do mundo? Cosmologicamente falando, não sei, mas os registos sugerem que a Argentina entrará em bancarrota no prazo de três a quatro anos. Aconteceu em 1978 e repetiu-se em 1986. Os heróis populares tendem a ser uma metáfora não transacionável, nem comestível, e mesmo quando alguém tem de os engolir (como pode bem ser o caso), por regra, não é o povo. Para muitos é a pergunta-chave da final deste domingo: quem sobra para engolir o sapo do triunfo de Messi?

No Argentina-Croácia de terça-feira, confirmámos o inédito em todo o esplendor: um jogador fixado em ser campeão mundial na última oportunidade da carreira e 25 que dariam um braço, cada, para fazê-lo chegar lá. No balneário de Scaloni, não há o “nós” que Fernando Santos afixou nos cacifos portugueses, mas também não há “eu”. Há um “Ele” maiúsculo que corre com 22 pernas de cada vez e um só pé esquerdo (não me peçam a biomecânica da coisa, pf). No Qatar, Messi é uma centopeia futebolística em busca da reencarnação de Maradona.

Talvez o terceiro golo à Croácia tenha sido irrelevante no apuramento, mas aquela jogada infernal foi como São Tomé a enfiar o dedo na chaga de Cristo para crer na ressurreição, com a diferença de que a generalidade dos São Tomés de Messi, jornalistas incluídos, não são assim tão difíceis de convencer. Vê-lo maltratar o defesa croata Gvardiol, ele próprio um predestinado ao Olimpo, foi o suficiente para poderem aspirar à final sem a suspeita teimosa de que o craque seja apenas uma sombra artrítica da velha “Pulga”. Messi vive, e meio planeta espera por domingo para fazer um manguito que leva 15 anos engatilhado. Mas Cristiano Ronaldo não está lá para o receber. Ou estará?

O Argentina-França pode ser muitas coisas diferentes, consoante a inspiração jornalística. Pode ser a vingança maquiavélica do abominável Qatar, proprietário de Messi e de Mbappé através da Oryx Sports Investments, que gere o clube de ambos (PSG), e pode ser a concretização dos auspícios Messiânicos, tão desejada pelo público, pelos comentadores e pelos próprios jornalistas, que tendem a ser parciais em favor da melhor história. No entanto, faltam letras no nome Messi. Ganhe ou perca o jogo de domingo, o messias dos novos tempos chama-se Mbappé, que é nem mais, nem menos, do que um Cristiano Ronaldo 2.0. Quase toda a seleção francesa, na verdade, tresanda a Ronaldo.

Para além de campeã mundial e novamente finalista, a França cresceu no século XXI até se tornar o berço da formação europeia, se não em número (há mais cinco jogadores espanhóis nas Big 5), pelo menos em qualidade e, sem dúvida alguma, na procura. Nenhum outro país conseguiu conciliar tão bem o atleticismo com os arsenais técnicos e táticos, em parte graças ao privilégio de poder casar como ninguém o futebol europeu e africano. Quando alguma seleção se aproxima dessa fórmula, faz-se notar. Do "onze" de Marrocos que, na meia-final do Campeonato do Mundo, chegou a submeter os franceses, três jogadores eram nascidos e formados nos Países Baixos, um em Espanha, dois em França, e a revelação Ounahi aterrou nas escolas do Estrasburgo, vindo de Casablanca, com 17 anos. O selecionador nasceu e formou-se em França. Mattéo Guendouzi, que Deschamps não tirou do banco, mantém nacionalidade marroquina.

Aquela imagem de Messi contra o Robocop, muito usada nos anos mais vigorosos de Cristiano Ronaldo, aplica-se ao quadrado neste Messi contra a nova França dominadora do futebol mundial. O que ele trouxe de místico e único ao jogo, os franceses trouxeram de abundância e aperfeiçoamento físico e tático, replicando o que era replicável. De alguma forma, uma pequena parte de Cristiano estará na final, e sem risco de perder o desafio. Com ou sem génios inatos no futuro, com ou sem rezas por mais talento sobrenatural, o futebol já não sai do laboratório.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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