Estrangeiros em Portugal: vistos sem resposta e nove meses à espera de carta de condução
Dois casos acompanhados pela JRS demonstram as dificuldades encontradas por imigrantes e refugiados em Portugal para ultrapassar a barreira burocrática.
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Quando foi retirada de Cabul, no Afeganistão, após a tomada do poder pelos talibãs, a família de Hamed Hamdard, de 39 anos, não sabia onde seria colocada. Em Espanha, para onde foi primeiro enviada, foi contactada por diplomatas portugueses que a convidaram a vir para Portugal. Aceitou. E está a tentar integrar-se, apesar de o refugiado descrever toda a experiência vivida com o sistema burocrático nacional como “um pesadelo”. O mais recente tem sido a tentativa de obter uma carta de condução nacional válida, que ele acredita que poderia melhorar as condições de vida da família.
Hamed chegou a Lisboa a 29 de Agosto de 2021, com a mulher e três filhas menores. Seguiram-se meses em centros de acolhimento para refugiados, até que a Câmara de Sintra lhes atribuiu uma casa, onde a família ainda vive. Ao telefone, o homem conta que os serviços municipais lhe indicaram uma pessoa que serviria de ligação, para ajudar a família com a adaptação e a obtenção dos documentos necessários à integração no país - cartão de residência, números de contribuinte e da Segurança Social -, mas que a ajuda acabou por ser quase inexistente. “Era muito difícil contactar essa pessoa. Dizia que estava muito ocupada com os refugiados da Ucrânia e que tínhamos de nos desenrascar”, diz.
E ele assim fez. Seguiram-se semanas consecutivas a dirigir-se ao SEF (Serviços de Estrangeiros e Fronteiras) e à Segurança Social. Experiências que descreve como “um pesadelo”. A barreira da língua - dele, que não falava português, e dos funcionários, que não falavam inglês -, associada à burocracia e falta de capacidade de resposta, sobretudo do SEF - “não respondem aos telefonemas, nem emails, e se se for lá directamente também não dão resposta”, diz -, levou os processos a arrastarem-se para lá do aceitável. “Perdi três empregos por não conseguir actualizar o cartão de residência”, conta.
Agora, a sua batalha é outra. Sendo o único suporte financeiro da família, Hamed quer arranjar um segundo emprego, eventualmente como motorista numa das plataformas digitais de transportes, como a Uber, mas está “há cerca de nove meses” à espera de uma carta de condução válida em Portugal. “Eu tenho a carta de condução do Afeganistão. Pedi para ter uma portuguesa. Tive de esperar quatro meses e meio até receber uma resposta do IMT para ir aos serviços e submeter os documentos originais. Fi-lo e disseram que iam converter a carta ou que teria de fazer um teste. Estou à espera da resposta há meses. E o mesmo se passa com outros afegãos que cá estão”, diz.
Com as filhas na escola, um emprego como tradutor na JSR desde Maio e, finalmente, a frequentar aulas de Português, Hamed aflige-se com o que irá acontecer no próximo ano quando, a partir de Fevereiro, terminar o apoio que lhe permite usufruir da casa sem pagar renda. “Com o salário que ganho e as despesas que tenho, não vai sobrar dinheiro para comida. Estou preocupado. O trabalho em part-time seria uma solução, mas preciso da carta de condução”, diz.
O PÚBLICO questionou o IMT sobre a situação das cartas de condução dos refugiados afegãos a residir no país. A resposta chegou esta sexta-feira, com o IMT a indicar que “os pedidos de troca de títulos de condução estrangeiros quadruplicaram entre 2016 e 2019, situando-se actualmente nos 60 mil pedidos/ano”. O instituto dá ainda conta de que “o tempo médio para tramitação do processo é de 128 dias (dias seguidos)”, ou seja, cerca de quatro meses. E acrescenta: “O IMT encontra-se a desenvolver procedimentos internos para o reduzir para metade, com excepção dos casos em que é necessário realizar um exame prático de condução.”
Contudo, conforme se percebe pela resposta referente ao caso específico dos cidadãos afegãos, percebe-se que esse tempo médio, pelo menos em alguns casos, foi largamente ultrapassado. O IMT diz ter 20 pedidos submetidos de cidadãos do Afeganistão, dois dos quais “anteriores a 2022”, e que, afirma em resposta escrita fonte da instituição, estão “a aguardar resposta às notificações enviadas aos condutores”. Já os 18 pedidos registados este ano aguardam “pagamento de taxa ou marcação de prova de exame teórico e/ou prático”.
Vistos sem resposta
Murali Krishna Sadagopan, de 33 anos, também está a passar por um calvário burocrático e diz que está quase a desistir e a regressar à Índia. O indiano aceitou um emprego como especialista informático de uma multinacional, para trabalhar a partir de Portugal. Recém-casado, viu ali “uma grande oportunidade” e aceitou-a, convencido de que se mudaria para Lisboa e que a mulher se juntaria a ele em poucas semanas. Isto foi em Outubro de 2021, e o processo ainda não está concluído, levando-o a classificar a actuação das autoridades portuguesas da seguinte forma: “Não desejava um tratamento tão horrível nem aos meus piores inimigos.”
Murali candidatou-se a um visto D3, destinado a especialistas que já tenham contrato de trabalho em Portugal. A informação das autoridades nacionais é que um visto deste género deve ser decidido no máximo em 30 dias, mas o indiano esperou quatro meses para receber um visto temporário, que chegou em Fevereiro, e conseguiu uma marcação no SEF apenas para Junho deste ano – o último dia de validade daquele documento. “Fui à reunião no SEF a 24 de Junho, mas, apesar de o processo não ter qualquer falha, levaram dois meses a deferi-lo e recebi finalmente a minha autorização de residência a 16 de Agosto”, descreve, por escrito, a partir da Índia, onde foi rever a mulher, depois de meses de afastamento.
Isto porque a vinda de Snigdha Vittaldev para Portugal, ao abrigo da reunificação de familiares, acabou por se revelar um pesadelo ainda maior. Da grande oportunidade que julgou ver no emprego oferecido na Europa, Murali diz ter, ao invés disso, vivido “uma das experiências mais stressantes e horríveis” de sempre.
Tal como refere o Livro Branco da JRS, a embaixada portuguesa na Índia recorre a uma empresa privada, a VFS Global, para instruir os processos de visto. “A minha mulher ainda não conseguiu encontrar uma vaga na VFS para se candidatar ao visto de reunificação familiar a partir da Índia. Verificamos o site todos os dias. Também não conseguimos uma vaga no SEF para obter uma aprovação de reunificação familiar. O SEF não atende chamadas e a marcação é simplesmente impossível”, conta. O mesmo refere sobre a embaixada portuguesa no seu país de origem: “Não respondeu a um único email nosso em meses. E mandámos mais de 50. Nem sequer atendem uma chamada telefónica.”
“Derrotado”, a sentir-se deprimido – “nenhum homem quer estar separado da mulher durante oito meses no seu primeiro ano de casamento”, realça -, Murali diz que o casal tentou contornar este problema, pedindo um visto de visita a familiares e amigos para Snigdha. A mulher tinha voo para Portugal para o passado dia 11 de Outubro, e regresso marcado para a Índia a 2 de Novembro, diz. “Passaram-se 90 dias desde o pedido e a embaixada portuguesa na Índia não nos deu qualquer resposta nem fez qualquer comunicação e estão simplesmente a reter o passaporte dela. Os números estão desligados e não responderam a um único email”, relata.
Desiludido com o país onde pagou “milhares de euros em impostos” nos últimos meses, Murali sentencia: “Ninguém devia ser tratado com tão pouco respeito.” E diz já não ter grandes forças para continuar a lutar contra o sistema. “Não tenho fé em Portugal e estou muito perto de desistir desta grande oportunidade de trabalho e regressar à Índia de vez”, conclui.
Notícia actualizada com resposta do IMT.