Em 150 anos, houve 115 desastres relacionados com cheias em Lisboa
José Luís Zêzere coordenou projecto que analisou o impacto de desastres naturais ao longo de 150 anos. Atribuir as cheias unicamente a alterações climáticas “é esticar a corda”, diz em entrevista.
Nos últimos 150 anos, houve 115 eventos de chuva com cheias e com pessoas a terem de ser retiradas ou realojadas por causa das águas no distrito de Lisboa. “É quase um caso por ano. Atribuir isto apenas às alterações climáticas é esticar a corda”, afirma em entrevista o professor José Luís Zêzere, que foi coordenador da base de dados Disaster – em que se analisou o impacto destes fenómenos naturais em Portugal continental. O trabalho que concluiu que as chuvas mataram mais de 1300 portugueses nos últimos 150 anos, já acabou, mas a base de dados continua a ser alimentada por bolseiros que estão a ser pagos por outros projectos, conta ao PÚBLICO.
O problema em Lisboa, uma cidade quase impermeável, está sobretudo relacionado com ordenamento de território, diz o também director do Centro de Estudos Geográficos. "O sarilho que aconteceu em Lisboa na noite passada é essencialmente devido a três horas de chuva. Se tivermos 120mm de chuva, é muita chuva. Em qualquer circunstância. Mas é diferente ela cair de forma regular ao longo de 24 horas ou se concentrar isso em duas ou três horas", resume, destacando que o mais invulgar foi ver o "rio atmosférico" que afectou regiões do interior do país.
As cheias dos últimos dias têm causado estragos sobretudo nas cidades “porque os problemas são estruturais e não são fáceis de resolver”, mas a culpa não pode ser só atirada às alterações climáticas, diz o investigador: os dados recolhidos no projecto Disaster mostram que estes fenómenos já aconteciam, mas, por outro lado, também não se deve minimizar o impacto das alterações climáticas.
Já a mortalidade ligada às cheias tem vindo a diminuir nos últimos anos. "Se alguém for afectado por uma cheia ou um deslizamento, a probabilidade de morrer num deslizamento é maior", constata o professor no Instituto de Geografia e Ordenamento de Território da Universidade de Lisboa.
Já sabemos que estes desastres de cheias e chuvas fortes que estão a atingir o país não são inéditos. Mas podemos concluir já que estão a ficar mais frequentes e intensos?
Estão mais próximos em termos temporais. Há muito tempo que não chovia, estamos a sair de um período de seca muito severa que se instalou nos últimos anos e este ano está a ser relativamente chuvoso. Começou a chover logo em Setembro, o que deu cheias e sarilhos nas escoadas de detritos na Serra da Estrela, na área ardida. E o Inverno ainda não começou.
Um ano hidrológico chuvoso, a partir de Outubro, certo? Porque o resto foi de seca severa.
Claro. É que o meu ano é diferente. O ano climatológico começa em Setembro, o hidrológico começa em Outubro. Fazer a contabilização da chuva por ano civil é uma coisa que ninguém faz. Ou numa medição ou na outra, o ano está a ir chuvoso. É uma boa notícia para algumas coisas: para as barragens e para a agricultura, é uma excelente notícia.
Isto é má notícia basicamente para as áreas urbanas porque os problemas que existem são estruturais e não são fáceis de resolver. As consequências são parecidas e tipicamente nos mesmos sítios.
A situação extrema no meio de tudo isto terá acontecido no final da manhã, em Portalegre. Aí, sim, é impressionante as imagens que vimos e o tipo de impacto que aquela chuva ali teve. Não é habitual chover daquela maneira num território já tão afastado do litoral. Do ponto de vista meteorológico, é caracterizado como um rio atmosférico.
Nestas cheias de Lisboa muita da responsabilidade tem sido atribuída às alterações climáticas. É um problema climático ou é um problema de ordenamento de território?
É essencialmente um problema de ordenamento de território. Sem querer desvalorizar a questão da alteração climática que está em curso e não começou agora. Não começou hoje. Não convém é confundir as pessoas e confundir as coisas. Os casos “disaster” são casos em que morrem pessoas e há pessoas desalojadas e retiradas. Nestes 150 anos da base de dados, no distrito de Lisboa (não na cidade), estão identificados 115 eventos em que temos chuva, com cheias e com gente a ser retirada ou desalojada ou morta. É quase um caso por ano. Atribuir isto a alteração climática é esticar um bocadinho a corda.
Uma das características que as alterações climáticas têm é a ocorrência de eventos extremos e mais frequentes e eventualmente com mais magnitude. Nós no último ano não temos tido mais eventos extremos ligados à chuva. O que temos tido é seca. Com a eventual excepção do que aconteceu hoje não têm sido batidos recordes.
Disseram-nos do IPMA que aqui em Lisboa se quebraram recordes e que choveram 120 milímetros. Confirma estes números?
Os números que tenho de ontem são: entre as 18h e as 8h da manhã, 112 milímetros, portanto, é possível que tenha chegado aos 120mm.
Nesse caso será um recorde?
O recorde que nós tínhamos no Geofísico era de 2008: 118,4. Andou ali perto. Mas o sarilho que aconteceu em Lisboa na noite passada é essencialmente devido a três horas de chuva. Se tivermos 120mm de chuva, é muita chuva. Em qualquer circunstância. Mas é diferente ela cair de forma regular ao longo de 24 horas ou se concentrar isso em duas ou três horas. A forma como ela se distribui no tempo faz diferença.
A chuva mais perigosa do ponto de vista das cheias são as chuvas cuja duração coincide com o tempo de concentração das bacias hidrográficas. O tempo de concentração é o tempo que demora a água da chuva a deslocar-se do sítio mais afastado da bacia hidrográfica até à foz da ribeira.
Quanto mais avançamos no tempo – e estamos numa estação razoavelmente chuvosa – esta chuva que caiu ontem caiu em cima de um terreno que já tinha muito mais água. Há aqui um efeito de acumulação de água nos terrenos que é sensível. A várzea de Loures já estava inundada no fim-de-semana. A chuva da noite passada já cai em cima de terrenos que já estão bastante carregados de água, portanto a água menos se infiltra e mais escoa. A tendência é acentuar o efeito das cheias e tem tendência a fazer aparecer outras coisas que são deslizamentos. Estão a acontecer agora.
Se a cidade tivesse mais capacidade de resposta poderia chover o mesmo e as consequências seriam diferentes?
Com certeza. Não é muito fácil. É por isso que há esta esperança toda outra vez nesta obra grande dos túneis e do plano de drenagem de Lisboa. É uma obra cara, uma obra estrutura de engenharia pesada e complexa que aparece porque já não é possível renaturalizar a cidade. O facto de historicamente - não é uma coisa de há dois ou três anos - não se ter respeitado as bacias hidrográficas naturais da cidade e se ter construído em cima de tudo, nomeadamente das ribeiras... Vamos pagando por isso. Mas não é de agora: em 150 anos temos 115 eventos.
Lisboa acaba por ser uma cidade impermeável?
Completamente. A água no alcatrão e no cimento não consegue passar. Não é uma cidade grande, mas é muito compacta. Como tem uma topografia variada, não é uma cidade muito plana, a água não se infiltra e escoa para todo o lado, por onde pode. E vai-se concentrar nos sítios mais baixos. A água tem de ir para algum sítio.
Nas cidades sabemos que assim é. Como é o cenário no resto do país?
No resto do país é razoavelmente mau. Estamos a falar de Lisboa porque choveu em Lisboa. O problema principalmente fora de Lisboa é a concentração excessiva de estruturas, equipamentos, casas de habitação com caves habitadas em leitos de inundação, em leitos de cheia. Temos isso por todo o lado. Quando chove mais e há cheias, temos sarilhos. São generalizados no país.
O projecto Disaster mostrava mesmo que Lisboa e Coimbra são os dois concelhos com mais cheias registadas.
Lisboa, Coimbra e Porto. Uma cheia só estraga casas se houver casas no leito de cheia. É nos sítios mais densamente povoados, nomeadamente nas principais cidades junto ao litoral, que nós temos mais problemas. Não é por haver mais cheias do que nos outros sítios, há é mais estragos de cada vez que há cheias.
Foi coordenador do projecto Disaster, que se focava em desastres naturais e dizia há alguns anos que as chuvas mataram 1310 portugueses nos últimos 150 anos. Há alguma actualização deste número?
Não cresceu muito. Está ligeiramente maior, mas não cresceu muito porque tem chovido pouco. Quando digo que quase não choveu é porque tivemos anos que foram predominantemente secos em Portugal continental.
Tem de haver mais preparação?
Claramente. Não são coisas complicadas, é: sucedeu x e eu devo fazer y. Com uma comunicação clara, transparente e sem equívocos.
Em que consistia o projecto?
A informação era dispersa e não estava sistematizada. Havia muita informação nos jornais, ainda que tivéssemos receio do período da ditadura, mas felizmente só houve censura em 1967. Na altura não eram as alterações climáticas, era o clima. Era um processo de naturalização do desastre. O desastre era natural e não havia responsabilidade institucional, portanto mesmo em situação de ditadura não se sentiu necessidade de censurar. Só censurou em 1967 e não foi logo.
O que começou a acontecer depois é uma coisa a que os brasileiros dizem com alguma piada que é o processo de desnaturalização do desastre.
O que nós fizemos foi ler milhares de jornais. Lemos cerca de 150 mil jornais com critérios muito bem definidos do que entrava ou não na base de dados. Praticamente há ocorrências daquelas em todo o lado, são mais concentradas nos casos que falámos há pouco porque temos mais população exposta. Lisboa, Porto e mesmo Coimbra e Aveiro estão na parte terminal das bacias hidrográficas e é aí que há mais inundações.
Percebemos que há uma tendência natural para que a mortalidade ligada às cheias diminua porque agora temos Protecção Civil e porque a qualidade das casas construídas em leito de cheias são melhores. Continuam a estar em leito de cheias, mas já não são barracas. Em contrapartida, nos deslizamentos não há redução da mortalidade.
Continua?
Continua porque a energia é demasiado forte para ser influenciada pela qualidade da construção. Mesmo uma casa bem construída num sítio perigoso vai ter problemas.
Em Portugal os casos de deslizamentos são menores do que os de cheias, não?
Têm sido. São menos e o número de mortos na base de dados é muito menor do que nas cheias, mas a taxa de mortalidade (quantos mortos a dividir pelo número de ocorrências) no caso das cheias é menor. Nós temos menos deslizamentos a bater em casas, mas quando batem matam mais. Se alguém for afectado por uma cheia ou um deslizamento, a probabilidade de morrer num deslizamento é maior.