O novo Batalha: matar saudades, ficar à porta e um programa para descobrir

O histórico cinema portuense voltou a abrir portas esta sexta-feira. A programação inaugural prossegue este fim-de-semana com visitas, exposições e filmes.

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O agora rebaptizado Batalha Centro de Cinema abriu portas esta sexta-feira
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Projecto de requalificação do edifício desenhado por Artur Andrade tem assinatura de Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez
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Frescos censurados pela PIDE que Júlio Pomar pintou no Batalha há 75 anos foram descobertos e recuperados durante as obras
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Sessões regulares de cinema, de quarta a domingo, custam entre 2,50€ e 5€

A curiosidade que nos últimos dias pairava na cidade em torno da reabertura do Batalha ficou evidente na fila que se formou, ao final da manhã desta sexta-feira, à porta do histórico cinema do Porto. Foram muitos os que abdicaram da sua hora de almoço para tentar agarrar os bilhetes que deram acesso gratuito às actividades do primeiro dia do fim-de-semana de inauguração daquela que é talvez a mais icónica e acarinhada sala da cidade, agora rebaptizada Batalha Centro de Cinema.

Fundada em 1947, foi a porta de entrada no cinema para muitos portuenses, de diferentes classes sociais, e um espaço-chave para dinamizar a zona onde está situada, a também ela icónica Praça da Batalha. Irradiador de várias vivências, que passaram também pela resistência contra a ditadura (ali se reuniam, durante o Estado Novo, artistas e intelectuais ligados ao PCP), o Batalha ocupa um lugar simbólico na memória colectiva da cidade - dele nasceu, inclusive, uma das expressões populares do Porto, “vai no Batalha!”, uma versão vetusta do “estás a fazer filmes”.

Amadeu Cardoso, 86 anos, é um desses portuenses para quem o Batalha foi “uma segunda casa”. “O que me trouxe aqui foi a saudade”, diz ao PÚBLICO este “ferrenho apreciador de cinema”, pouco depois de as portas terem aberto ao público. Sócio do Cineclube do Porto há 70 anos (“nunca deixei de pagar as quotas, mesmo nos tempos maus”), a sua relação com o Batalha começou, precisamente, com as sessões do Cineclube, estrutura responsável pela direcção da sala nos primeiros anos de vida. “Vinha ver aqui todo o tipo de filmes”, recorda. “Aos fins-de-semana via cinco sessões por dia em várias salas da cidade, do Coliseu ao Trindade”.

Perante uma programação que considera “muito diversificada e experimental”, que vai do cinema a outras áreas artísticas, escolherá ver aquilo que mais lhe convier em termos de horários. “Estou muito condicionado pelas dificuldades de mobilidade e sempre dependente de terceiros, por isso tenho de procurar sessões que encaixem na minha disponibilidade, o que passará por vir cá durante a tarde." Isso irá impedi-lo de marcar presença nas matinés do Cineclube do Porto, que acontecerão no Batalha quinzenalmente aos domingos de manhã.

“Gostava muito, mas de manhã já não tenho forças. Virei com certeza a sessões da tarde; é preciso manter esta sala viva”, afirma, lamentando o facto de não ter chegado a tempo de conseguir bilhete para a sessão inaugural. A double bill com The New Sun (2017), de Agnieszka Polska, e O Dia em que a Terra Parou (1951), de Robert Wise, capítulo inicial do ciclo temático Políticas do Sci-Fi, estava teoricamente esgotada. No entanto, pelo menos na sessão da tarde (seguiu-se um segundo round no início da noite) havia lugares vazios, o que acabou por tornar o momento mais exclusivo do que devia e podia ter sido, com muitas caras do costume.

Privados e poder local na cultura

Antes tiveram lugar os discursos oficiais da praxe, e respectiva troca exacerbada de elogios, com Guilherme Blanc, director artístico do Batalha Centro de Cinema, Rui Moreira, presidente da autarquia e vereador da Cultura, Pedro Adão e Silva, ministro da Cultura, e Alexandre Alves Costa, histórico arquitecto portuense, co-responsável, juntamente com Sérgio Fernandez, pelo projecto de requalificação do edifício desenhado por Artur Andrade.

Ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva; presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira; Guilhermo Blanc, director artístico do Batalha Anna Costa
Histórico arquitecto portuense Alexandre Alves Costa, co-responsável, juntamente com Sérgio Fernandez, pelo projecto de requalificação do edifício Anna Costa
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Ministro da Cultura, Pedro Adão e Silva; presidente da Câmara do Porto, Rui Moreira; Guilhermo Blanc, director artístico do Batalha Anna Costa

“É fundamental revigorar esta ideia de que os filmes são para ser vistos no cinema, e isso passa a ser ainda mais possível no Porto”, disse Pedro Adão e Silva. “Queria também dar conta do entendimento que eu faço da cultura, que é uma responsabilidade partilhada”, assinalou o ministro da Cultura. “É, naturalmente, uma responsabilidade do ministério, mas deve ser também das autarquias e dos privados. Precisamos, aliás, de uma maior presença dos privados e do poder local na cultura. Gostava que quando deixar de ser ministro isso seja mais sentido; que a cultura deixe de ser só responsabilidade do governo central.”

Declarações que parecem ser uma referência ao modelo de funcionamento do novo Batalha. Em Setembro de 2017, após tentativas de compra, a autarquia celebrou um contrato de arrendamento por 25 anos, no valor de 10 mil euros mensais, com a empresa proprietária, a sociedade familiar Neves & Pascaud, sendo que as obras de requalificação, orçadas em 5,17 milhões de euros, foram totalmente suportadas pelo município. Um modelo que Rui Moreira considera “uma excelente parceria público-privada”, mas que desagrada a alguns portuenses.

“O actual Batalha é de investimento e financiamento públicos, mas o património continuará a ser privado. Este estatuto deixa-o desprotegido contra vontades políticas e económicas”, considera Ana Dias, 34 anos, com quem nos cruzamos durante a inauguração. “Como portuense que cresceu a poucos metros do Batalha, deixa-me feliz ver um edifício tão importante para o Porto voltar a funcionar com o seu propósito original. Mas o rumo desta cidade já não me permite ser naïf e preocupa-me não terem sido garantidas as fundações necessárias para a continuidade do cinema a médio e longo prazo.”

Fonte da presidência avançou ao PÚBLICO que a câmara chegou recentemente a acordo com os proprietários para prolongar o contrato por mais cinco anos, que equivale ao período já cumprido sem actividade programática. O contrato só poderá ser revogado pela autarquia, não pela família, e é renovável - mas isso dependerá sempre da vontade do executivo que irá suceder a Rui Moreira. A julgar pelo que disse na sessão de abertura, numa espécie de indirecta a questões levantadas pelo PÚBLICO, Rui Moreira está optimista. “O que vai acontecer depois? Podem ter a certeza que vai continuar”.

Entusiasmo e desconfiança

Foram muitos os curiosos - e de diferentes gerações, dos 20 aos 80 anos - que durante a tarde e a noite de sexta-feira circularam pelos diferentes espaços do renascido Batalha. Dos foyers ao bar, da Biblioteca e Filmoteca à Sala-Filme, onde está a instalação Premium Connect, da artista Tabita Rezaire (sem esquecer WC sem género, que gerou um certo burburinho). Os frescos censurados pela PIDE que Júlio Pomar pintou no Batalha há 75 anos, e que foram descobertos e recuperados durante as obras, foram uma das principais coqueluches da inauguração, dando azo a inúmeras stories do Instagram.

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Uma das atracções da noite de inauguração foram os frescos de Júlio Pomar, descobertos e recuperados durante as obras Anna Costa

O que também recebeu olhares atentos foi a exposição A Confederação - Dentro Daquela Liberdade Que Tínhamos, uma mostra documental ao longo dos foyers dedicada ao processo de criação e produção do filme A Confederação - O Povo é que Faz a História (1977), de Luís Galvão Teles, uma das raras aventuras portuguesas no género de ficção científica, alinhando-se ao mesmo tempo com o cinema militante do 25 de Abril. “A ditadura portuguesa também foi dureza”, comentam uns jovens brasileiros. O filme será projectado este domingo à tarde, seguido de uma conversa com o realizador, o escritor Amadeu Lopes Sabino e o ensaísta e professor Arnaldo Saraiva.

Também houve quem entrasse para dar uma espreitadela rápida ao edifício e saber das novidades. “Eu e a minha mãe estávamos a passar agora na rua. Estávamos a par das obras, mas não sabíamos que já tinha aberto”, partilha Cláudia Solange, moçambicana de 28 anos a viver no Porto. “Está mesmo muito giro e não sabia que também ia ter um café-bar. Pena que os bilhetes para hoje já estejam esgotados.” Apesar de ainda não ter visto a programação, Cláudia diz que está a pensar frequentar o Batalha. “Moro aqui perto, dá para vir a pé. Eu gosto muito de cinema, e gosto de ver filmes em sala - não consigo ver em casa.”

Maria Emília, comerciante que apanhamos à porta com ar desconfiado, sem meter o pé lá dentro, é menos entusiasta. “Não estou a conhecer nada do que está aqui no programa, não sei…” Pergunta se há sessões gratuitas. Haverá pontualmente, mas as regulares, de quarta a domingo, custam entre 2,50€ e 5€. “Pois, a vida está muito difícil. Comprar pão e legumes já é um esforço”, desabafa, no meio de uma praça que, para lá do verniz do turismo, congrega uma população bastante empobrecida (ver um grupo de voluntários a distribuir comida a população carenciada enquanto há pessoas à espera para entrar numa inauguração é aquela fatia de verdade e de desconforto servida à última hora).

E é também por esses vizinhos do Batalha que deverá passar o trabalho de construção de comunidades e mediação de públicos da instituição - que é, de resto, uma das principais missões do projecto, assumida e destacada por Guilherme Blanc. “Queremos ser um centro de cultura e de cinema destemido, divertido e, acima de tudo, inclusivo”, afirmou na sessão de abertura, onde fez também um resumo das linhas-mestras da programação. “Esperamos que criem discussão e diferentes zonas de conforto.”

“Antes de pensarmos como vai funcionar, se vai funcionar melhor ou pior, é um projecto pensado de raiz para esta cidade, para a sua relação com a história do cinema e para este tempo, e isso é muito positivo”, considera José Manuel Costa, director da Cinemateca Portuguesa e um dos muitos agentes do meio cultural de Lisboa presentes na inauguração. Sobre a questão da programação do Batalha ser ou não demasiado de nicho, José Manuel Costa diz ainda não ter tido tempo para “estudar todas as vertentes” do programa, mas a sua interpretação inicial é de que “estão a tentar um equilíbrio”.

“Uma população de uma cidade como esta faz-se de várias camadas e é preciso não alienar as pessoas que, apesar de ficarem mais em casa a ver filmes na televisão, carregam dentro de si a memória da história do cinema e gostariam com certeza de vir aqui”, observa. “Mas há outro aspecto: para as camadas mais jovens é fundamental introduzir a história do cinema. É nas salas que se aprende.”

Antes ou depois dos filmes, esse processo de aprendizagem - seja do cinema mais clássico, seja do cinema mais contemporâneo - poderá passar também pelo espaço da Biblioteca. É lá que encontramos, às onze da noite e com os DJ sets já a decorrerem no bar, uma mãe e um filho concentradíssimos numa mesa a ler. “Não conheço muito bem cinema, não costumo ver regularmente, mas quero aprender mais e por isso vim aqui”, diz Pedro Bessa, 16 anos, com uma edição da revista Sight & Sound nas mãos. Já a mãe está a desbravar o caderno de programação.

Espaço da Biblioteca e Filmoteca no Batalha Anna Costa
Uma das salas de cinema Anna Costa
Foyer Anna Costa
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Espaço da Biblioteca e Filmoteca no Batalha Anna Costa

“É tudo novidade e desconhecido, mas estamos a ver o que nos pode fazer voltar cá, talvez com amigos e família”, aponta Maria Loureiro. “Sei que acontecem em paralelo outras actividades, isso também nos interessa.” Para este fim-de-semana, Pedro já fez a sua escolha: Chocolat, filme de Claire Denis que este sábado à noite marca o arranque da retrospectiva dedicada à realizadora francesa.

E enquanto Pedro e Maria continuam na Biblioteca, lá fora vai-se adensando a fila para entrar no Lux Frágil, perdão, no Batalha - mais concretamente na festa, com as DJs Juliana Huxtable, Jackie e MVRIA a conquistarem a pista improvisada. Se durante o dia o Batalha foi palco para um cruzamento intergeracional, a noite pertenceu aos mais jovens, e sobretudo a quem já costuma circular no meio artístico.

A programação inaugural prossegue este fim-de-semana com visitas guiadas, sessões para família (de Viagem à Lua, de Georges Méliès, a Wallace and Gromit, de Nick Park) e filmes acompanhados de conversas (tudo com entrada paga, excepto as visitas e as exposições já mencionadas).

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